Oito filhos. De quatro mulheres diferentes.
Quem dos meus amigos tem oito filhos? Dos meus conhecidos? Conhecidos dos meus amigos? Nenhum. Nos dias de hoje ninguém tem oito filhos. Só eu.
O primeiro é uma menina, de uma namorada por quem eu era apaixonado e que veio me anunciar, duas semanas antes do meu aniversário de vinte anos, que estava grávida. A paixão acabou ali e eu pouco vi essa filha, o que não quer dizer que me vi livre de registrar a criança e pagar pensão até ela ter a mesma idade que eu tinha quando a concebi. Dinheiro foi o menor dos problemas, meu pai assumiu a despesa, mas eu tive que aguentar um rosário de reclamações da mãe da menina que achou que eu fosse participar de festinhas infantis, teatrinho da escola, reunião de pais e sei lá mais o quê. Até que um dia desistiu e me deixou em paz. Às vezes por esquecimento, e outras de propósito, eu rateava os fins de semana quinzenais e, aos poucos, fomos perdendo contato.
Me apaixonei novamente e dessa vez observando as etapas – namoro, noivado, casamento – fui pai novamente. Um menino, como eu queria, que chamei de Joaquim, em homenagem ao avô. Dois anos depois, quando eu já não estava mais tão apaixonado, nasceu Cecilia. Enfrentei sem questionar as festinhas infantis, os teatrinhos da escola, reuniões de pais e tudo mais que apareceu. Quando Cecilia completou cinco anos, eu me peguei ficando até mais tarde no escritório sem vontade de ir para casa. Era um alívio quando eu chegava e as crianças já estavam dormindo, e pagava com prazer o preço da tranquilidade na moeda de reclamações da minha mulher por eu ter chegado à tal hora e por dedicar tão pouco tempo à família.
Quando completei trinta e três anos ouvi de uma tia velha que essa era a idade de Cristo quando foi pregado à cruz. Não sei que analogia doida eu fiz, nem por qual raciocínio tortuoso cheguei à conclusão de que, se Cristo tinha, aos trinta e três anos de idade sido crucificado, sofrido na cruz e ressuscitado para uma vida melhor, esta era a hora de eu fazer o mesmo. Assim, poucas semanas após o grande jantar em comemoração ao meu aniversário, cheguei do escritório tarde em casa, ouvi as reclamações de praxe e, aproveitando o clima, comuniquei que estava indo embora. Choro e ranger de dentes só me convenceram de que eu tinha tomado a decisão acertada.
Novamente solteiro, morando num quarto de hotel perto da orla, virei assunto do momento: para as amigas da minha mulher, o FDP que tinha largado a família sem aviso prévio; para as outras mulheres, o mais novo bom partido da cidade. O efeito colateral desagradável foi a ira do meu pai que adorava minha ex-mulher, me chamou de moleque e, em represália, deixou de pagar a pensão que vinha pagando para a minha primeira filha. De uma hora para outra tive que incluir no orçamento mensal pensão para uma ex-namorada, uma ex-mulher e três crianças.
Modéstia à parte administrei bem minha vida de recém solteiro, pai quinzenal de Joaquim e Cecilia, e empresário. Mudei-me do meu hotel para um bom apartamento com dois quartos extras para crianças e babás esporádicas, contratei uma boa empregada “surda e muda” e segui minha vida de muitas namoradas tomando o cuidado de não me encantar muito com nenhuma.
Joana chegou de mansinho, poucos anos depois, furando minhas auto-impostas barreiras e me conquistando o coração. Foi a primeira mulher pós divórcio que levei para dormir em meu apartamento. Uma, duas, três, várias vezes, e não era incomum encontrar roupas, perfumes e absorventes nos armários da casa. Conheceu meus filhos e se entenderam bem nos fins de semana em que eu os recebia.
Sem que eu percebesse, as partes estanques de minha vida iam se misturando. Joana administrava as compras, dava ordens à “surda-muda” e combinava horários e programas infantis com as babás. Me fazia feliz como mulher e me dava tranquilidade no lar. Finalmente mudou-se de vez para viver comigo e assumi, perante o mundo, Joana como mulher. Cedi quando ela disse que queria um filho, achei que ela merecia essa alegria. Deixei claro que eu não tinha sido um bom pai para minhas crianças e ela, rindo, respondeu que já tinha testado – e aprovado – o “pacote”, e não me pedia nada além do que eu podia dar.
Fui pai novamente, e de novo, e mais outra vez. João, Patrick e Amanda. Três filhos com Joana que eu considero a mulher da minha vida.
Foram anos tranquilos, Joana funcionava como mãe e pai, dona de casa e mulher. Vivi uma fase produtiva no trabalho e nos relacionamentos. Dediquei-me com afinco ao escritório e recebi muitos amigos em nossa casa. Compramos a casa de praia e a lancha, suficientemente grandes para que coubéssemos todos, e Joana conseguiu o impensável: unir em harmonia cinco de meus seis filhos nos fins de semana em que eu recebia Joaquim e Cecilia. Conquistou meu pai e conseguiu fazer com que nos reaproximássemos.
Até que veio o terremoto, 8.9 graus na escala Richter. Destruição total onde nada e nem ninguém escapou sem marcas profundas. Fui o mais atingido pelos destroços do mundo que desabou sobre mim, no dia em que soube que Joana tinha um caso com um amigo comum. Soube por meu pai, que também sofria por saber que dilacerava o coração do único filho com notícia tão triste. Ele havia desconfiado e ido a fundo na checagem contratando um detetive particular. Chegou a mim munido de provas, sem me deixar ao menos o benefício da dúvida na qual ele sabia que eu me agarraria como um náufrago à uma tábua em meio à tempestade.
Sobrou raiva para o meu pai, mero portador da notícia; para Joana, uma ira e ódio mortais; sobrou até para meus três filhos, então com treze, dez e seis anos.
De cabeça quente e contrariando instruções, saí de casa naquela mesma noite, deixando para trás objetos pessoais, quadros, artes, tapetes, e tudo o mais de valor conquistado em meio século de vida e anos e anos de muito trabalho. Contratei o melhor escritório de advocacia especializado em divórcios litigiosos e parti com força para cima da minha ex-mulher. Recebi com ódio a informação deste mesmo escritório que, por mais corno que eu fosse, era responsável pelo pagamento de uma pensão milionária à Joana que não ficara atrás contratando, ela também, um excelente escritório que partiu, também ele, com toda força, para cima de mim.
Emergi dos escombros amargo, sete quilos mais magro, brigado de morte com minha ex e também com meus filhos. Descobri na Joana mais que uma guerreira: uma guerrilheira capaz de arrasar quarteirões inteiros sem se preocupar com os óbitos de ambos os lados. Levou parte dos meus bens, tangíveis e intangíveis, e envenenou meus filhos invertendo ao máximo a lógica da separação, fazendo-os acreditar que ela era a mocinha, e eu, o vilão.
Resolvi dar tempo ao tempo com a certeza de que meus filhos, com o passar dos anos, mais velhos e vividos, enxergariam com clareza o que tinha acontecido e, numa reviravolta de final feliz, dariam as costas à mãe e se jogariam nos meus braços. Até lá eu pagaria a pensão de seis crianças, uma namorada e duas ex-mulheres, e sairia muito, todas as noites, com as jovens mais lindas do Rio, para mostrar à Joana o quanto eu era desejado e o que ela estava perdendo.
Novamente fui parar nas bocas do mulherio, cantado em prosa e verso como bom partido e mão aberta. Diverti-me menos do que esperava e o passar dos anos, ao contrário do que pensei, não trouxe meus filhos de volta, e ainda me afastou de meu pai. Se minhas namoradas-modelos mataram Joana de inveja, eu nunca soube. O affair dela com o pivô da separação acabou, mas chegou aos meus ouvidos que Joana estava namorando um sujeito bem mais velho que ela, e vivia feliz.
Tomei cuidado para não me envolver com nenhuma das mulheres com quem saía, mas não fui suficientemente cuidadoso em evitar filhos. Em algumas ocasiões joguei com a sorte dando chance ao azar, que me atingiu em dose dupla na forma de uma gravidez de gêmeos atribuída pela namorada de duas noites a mim. Enfrentei a má notícia junto com um bom advogado que mandou que eu fizesse um teste de paternidade que, ao contrário de me absolver, me condenou à mais dura das penas: pagar pensão para duas crianças de uma quase desconhecida, crianças com as quais eu não pretendia conviver. De quebra, conquistei definitivamente a raiva e desprezo dos meus filhos mais velhos: Joaquim, então homem feito de trinta e três anos – a tal idade de Cristo com a qual me separei de sua mãe – e Cecilia, que se casara sem ao menos me convidar para a cerimônia. Quanto à João, Patrick e Amanda, nosso único elo era o pagamento mensal da pensão depositada na conta da Joana que vivia com o namorado velho. Não fiquei sabendo o que eles acharam de ter dois novos irmãozinhos e aposto que Joana gargalhou.
Meu pai novamente me chamou de moleque, e dessa vez, com razão, mas não dei meu braço a torcer. Aliás, “moleque” não era o adjetivo que me incomodava, mas sim o de “corno”, e, sobretudo, o de “babaca”, por ter me deixado fisgar por uma louca disposta a engravidar para levar algum. O dinheiro, novamente, não foi problema. O muito que ela achava que tinha conseguido era relativamente pouco para mim se comparado à pensão paga à Joana, e fez parte desse montante um pacote “cuide das crianças e não me encha o saco”, que foi o que aconteceu. E esses netos, nem meu pai quis conhecer.
***
Vou fazer 70 anos e não tenho muito o que comemorar. Saio com uma ou outra namorada esporádica, mas sem a tesão de antigamente. Tenho o respeito da minha equipe de trabalho, com um sentimento cada vez mais frequente de ter sido ultrapassado por essa garotada que faz três coisas ao mesmo tempo colada em seus celulares e pads. Sou avô de seis netos que não conheço e órfão de mãe desde sempre, uma mãe que se foi sem me dar irmãos e sem deixar lembranças. Quanto a meu pai, ao menos fizemos as pazes antes dele partir. Trabalho mais do que deveria, e muito mais do que preciso. Fico até tarde, toda noite no escritório, sem vontade de voltar para casa.
***
Estou atrasado para a reunião com um cliente que se encontra há vinte minutos na sala de espera. Eu o deixo esperar. Fico sentado com o telefone na mão até que o recoloco na base. Tinha acabado de atender a ligação que a secretária me passou.
– Mariana para o Sr.
– Mariana de onde?
– Ela diz que é sua filha.
Sim, esse é o nome da minha primeira filha, que eu não vejo há décadas. Não soube mais dela, não procurei saber. Deve ter quase cinquenta anos, mais velha que a namorada da vez.
Meu instinto de defesa me põe alerta: o que será que essa filha quer de mim? Dinheiro? Ajuda? Problemas. Mulheres são fontes de problemas. Pensei em não atender, mas a curiosidade foi mais forte.
Mariana me ligou para dizer que sua mãe falecera recentemente, e achou que eu deveria ser informado.
Foi assim que recebi a notícia de que havia morrido minha primeira namorada, a mulher que me deu minha primeira filha. Partiu depois de enfrentar e perder a luta para um câncer que a levou em poucos meses. Fato consumado. Simples assim. Sumi de sua vida e agora ela está morta. Fim, the end, não a verei mais, nunca mais, nem que eu queira.
Mariana perguntou por mim, por minha saúde, com uma voz pausada e agradável ainda que um pouco triste. Sabia dos meus muitos casamentos, e de seus muitos meio-irmãos. Acompanhara de longe minha vida e o meu sucesso. Essas foram suas palavras: minha vida e meu sucesso!! Se interessava por esse pai que nunca quis saber dela, sem mágoas – me garantiu – mais por curiosidade. Sua mãe não se casara novamente e falava sempre de mim. Segundo Mariana, fui o amor de sua vida.
Conversamos por muito tempo e marcamos de nos encontrar para um café.
– Como vou te reconhecer? – perguntei.
– Sou igual à mamãe.
Não tive coragem de dizer que não me lembrava do rosto de sua mãe.
– Vou com minha filha mais velha – ela continuou. Ana quer te conhecer. (Ana, o nome da avó).
– Então você tem filhos… (meus netos!)
Sim. Soube que Mariana teve cinco filhos e Ana era a mais velha. Cinco filhos. Todos do mesmo marido. Que tipo de mulher hoje em dia tem cinco filhos, e todos do mesmo marido? Seguia casada e o marido tinha sido contra o telefonema. “Esquece o seu pai “, ele tinha dito à Mariana. Aposto que a frase completa tinha sido “esquece o FDP do seu pai”. Mas Mariana insistira, ligara, e aqui estava eu, sentado, cada vez mais atrasado para a reunião, com o telefone na mão, tentando lembrar o rosto da Ana de quem eu rasgara todas as fotos.
***
Hoje faço setenta anos e não tenho muito o que comemorar. Mas decidi comemorar mesmo assim. Nada de jantar à luz de velas num restaurante – mais um jantar de aniversário – com a mulher com quem estou saindo.
Esse ano vai ser diferente.
Convidei Mariana e seu marido – que não queria que ela me ligasse – e seus cinco filhos para jantar em minha casa. Contratei um buffet, mandei comprar flores, dispensei a namorada, e estou andando de um lado para outro pelo apartamento esperando a campainha tocar, com um frio na barriga que não sinto há muito tempo. Chequei os trabalhos na cozinha, troquei cinzeiros de lugar, rearrumei os objetos sobre as mesas…
Voltei para me sentar no sofá com um sentimento estranho, como se eu estivesse vazio, mas pronto para ser preenchido. Não me lembro de alguma vez ter me sentido assim. Não consigo nem mesmo identificar esse sentimento. Uma angústia permeada de esperança, medo e expectativa. Um feto sendo parido para uma vida desconhecida. E, como um bebê ao nascer, só Deus sabe o que me espera.
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Fiquei muito feliz – e orgulhosa! – em ter meu conto publicado por vocês.
Espero que gostem, e que seja o primeiro de muitos! 🙂
Oi minha querida Eunice, quanta clareza em nos transportar para os momentos e os relatos sobre famílias e filhos e diferentes pontos de vista! Escrita fluida e rica! Amei!
Obrigada, Maria Luiza. Elogio seu vale por dez!
Muito precioso a leitura.
Deus lhe abençoe sempre 🙏🙌
Que bom que gostou! 🙏🙏
Que texto poderoso, Eunice! Como dói saber que existem – de fato – pessoas assim.
E, felizes daqueles e daquelas que podem ter a oportunidade de um recomeço como o da sua personagem, mesmo que tardio.
Mas, que ele era um belo de um FDP, isso, era.
Parabéns pela criação.
Obrigada, Leo! Sempre da para recomeçar, e todos merecem, mesmo os FDPs! 😉
Um ótimo texto, parabéns!!
Obrigada! Muito bom ter feed-back de leitor! 🙏🙏
Muito bom! Você retratou muitos pais nesse texto. Adorei.
Eunice estava lendo teu trabalho quando me dei conta: “pô” esse homem de vida tortuosa está sendo criado por uma mulher . Esse que te escreve é um homem com cinco filhos e vários casamentos. O melhor deles foi de longe aquele no qual não tive filhos. Sou um idoso, o teu trabalho é ótimo e se fosse transformado em um enredo teatral os personagens estariam vestidos com roupas que não se usam hoje. A saga de teu personagem seria muito diferente com os usos e costumes de hoje, seguramente os homens e as mulheres teriam papéis diferentes. Não interprete como uma crítica apenas uma observação, eu não consigo entender mais os relacionamentos dos meus filhos mais jovens. Eles não namoram, eles ficam. Pescam seus relacionamentos no Tinder.
Tive muito prazer na leitura do teu trabalho, meus parabéns pela escrita e pelo senso de humor um tanto ácido.