No meio do traçado da construção de uma estrada, havia uma árvore centenária. Teria de ser removida. A questão foi encaminhada para os moradores decidirem por plebiscito. Derrubar ou preservar? Apurados os votos, a manutenção da árvore ficou garantida. O projeto, ah, o projeto, que seja alterado, que seja arquivado, prevaleceu o desejo manifesto da população. Isso não é sonho, aconteceu de fato na Noruega, e me
foi relatado por um amigo que por lá estivera, portanto, testemunha ocular. Nessa época, éramos jovens e entusiastas. Essa realidade seria transposta para nosso país, quando não mais a ditadura, acreditávamos nisso. Nosso futuro era delineado entre sussurros, proibidos que éramos até de sonhar. Sonhos produzem ecos, pulsam, aglutinam gente – de autoritarismo, basta! Dessa época, guardei certos anseios. Em algum tempo, quem sabe, o tal futuro projetado possa me surpreender.
Lembrei-me do plebiscito da Noruega quando soube da construção de um túnel na Vila Mariana. Não há termos de comparação, afinal o que deu errado por aqui? Por que o povo é alijado de decisões que lhe dizem respeito? Penso na Ágora da Grécia antiga, mas isso também é sonhar demais, reconheço.
Tapumes encobrindo o canteiro central da avenida Sena Madureira chamaram atenção dos moradores. Afinal o que está acontecendo, um vizinho indagando o outro. Descobre-se que um antigo projeto começou a ser implementado. Em meio à perplexidade, moradores resolvem organizar o protesto: não ao túnel.
E no domingo, vai-se formando uma aglomeração no início da avenida. Os que moram mais perto, chegam a pé, outros vêm de metrô, aparece um grupo de bicicletas, várias. É preciso se inteirar dos fatos, tudo parece tão nebuloso. Pau Brasil, Jacarandá, Pau Ferro, entre centenas de árvores a serem extirpadas, é possível isso? Moradores desalojados, para onde?
De repente, a gente acorda com um caminhão na porta, vão derrubando árvores, como se ninguém estivesse vendo, diz a moradora. Com o semblante apreensivo, ela conclui: a gente não tem dinheiro, não tem condições de sair de lá. Um senhor de chapéu e camisa bege dá o seu recado – não é só o meio ambiente a ser afetado, a questão é social também, muita desumanidade! A amiga se aproxima de mim e sussurra em meu ouvido – falta amor nesta cidade. Uma voz mais racional se faz ouvir: esse túnel faz parte de uma espiral negativa, está-se criando uma cidade cada vez pior.
Em cima de uma mureta, o professor que mora na minha rua explica a importância da vegetação urbana – árvores absorvem CO2, reduzem poluição, proporcionam umidade, diminuem a temperatura, o ambiente fica mais saudável. Um cachorro solta-se da guia e circula no meio das pessoas. A moça a seu lado, acrescenta – ah, tem mais uma coisa, falam em compensação ambiental, mas colocam umas mudinhas em um canto
qualquer, não cuidam, morrem, por isso – não ao túnel! Entre aplausos, sai puxando o coro contra o projeto.
Alguém lembra que é chegada a hora do gesto simbólico. Com faixas e cartazes o grupo segue pelo canteiro central da avenida. Buzinas em sinal de apoio. Acenos, de lá e de cá. E junto às árvores, todos conectados pela preservação da vida, de mãos dadas gritam: Não vai ter túnel. Não vai ter túnel. Não vai…
A criança de vestido florido aperta a mão de uma mulher:
− Mãe, vai?
A natureza lutando para sobreviver… lutando contra o concreto, as imensas construções… onde no futuro não teremos árvores… e já será tarde. E o homem do concreto, ficará olhando as imensas construções. Será tarde para o arrependimento…
Patrícia, que ecoem nossos gestos, nossas palavras, que não seja tarde!
É isso aí Lourdes. É preciso botar a boca no trombone. Sua crônica vai ajudar nesse movimento. É necessário exigir uma análise de impactos ambientais atualizada e que leve em conta as necessidades da população atingida pela obra. E que belo final você achou!
Concordo, é preciso botar a boca no trombone. Vamos nessa, Carlos!
Bravo, Lourdes! Tentando impedir a devastação do nosso imenso pulmão verde, denunciando em caixa-alta os abusos dos interesses torpes.
Enquanto isso, vamos semeando ideias no solo fértil dos nossos leitores.
Que essas sementes germinem e desabrochem em ações conscientes.
Sim, vamos semeando!
Eu já comentei este texto que vimos também no último sarau. Eu adoro a escrita de Lourdes … Este problema que ela aborda no túnel é um problema de todas as cidades … A ganância apaga a questão social e ambiental e só aparece uma aglomeração sem memória que se auto devora, pretende ficar melhor e mais bonita ao passo que vai nos matando aos poucos com tanto deshumanidade e desurbanização. Afinal o que estamos criando não é mais uma cidade. É um monstro impermeável vertical onde a vida fica cada vez mais relegada à periferia.