O maior festival literário da América do Sul, para onde acorrem escritores do mundo inteiro. Alguns já conhecidos, outros que se farão conhecer pela multidão alegre e expectante da grande festa literária.
Com semanas de antecedência escolhemos as mesas onde os autores mais concorridos vão falar sobre seus últimos livros e agora, mais do que antes, foram inaugurados novos espaços de encontro além do local principal, a grande tenda, espaço sagrado onde se homenageia e se consagra o grande momento.
Cheguei em Paraty no segundo dia da FLIP, depois de seis horas de viagem, em um final de tarde chuvoso. As pedras brilhantes, arredondadas por séculos de tráfego de carros de boi, cavalos, burros e carroças causam admiração e temor. O conhecido “pé -de- moleque”, construído no século XVIII, durante o desenvolvimento do ciclo do ouro.
A cidade de Paraty ficou muitos anos esquecida no tempo. Somente na década de 1970 começou a se recuperar devido à abertura da rodovia Rio-Santos. A partir de então, o turismo passou a ser a principal atividade econômica da cidade. Este longo período de esquecimento fez com que ficasse preservada como era nos séculos XVIII e XIX. As ruas do centro histórico eram calçadas com pedras irregulares, trazidas de Portugal como lastro nos barcos, que as deixavam em Paraty e voltavam carregados de ouro e outras mercadorias. Até 1980 o calçamento de pedras estava em perfeito estado, alinhadas e todas na mesma altura. Entretanto, nesse ano, elas foram retiradas para a construção da rede de esgoto e ao serem recolocadas não o fizeram corretamente. Falta de planejamento, reparo insuficiente, e impacto na identidade histórica resultaram em uma alteração na aparência das ruas comprometendo uma cidade que tanto valoriza seu patrimônio cultural.
Toda esta introdução é para falar a respeito do meu corpo em Paraty.
Até o ano passado meu corpo fazia os ajustes necessários para me movimentar de acordo com o ambiente.
Costumo caminhar na rua olhando para o chão, pois sei que as calçadas são perigosas, esburacadas, mal-cuidadas, mesmo em Higienópolis, bairro de elite e de velhos.
Em Paraty, com todos os sinais de perigo em alerta, a coragem de enfrentar qualquer tipo de distância sozinha, me faltou.
Durante à noite, pé -de -moleque brilhando de chuva, nem pensar, durante o dia, pé -de- moleque seco, embora temerário, arrisquei.
Esta viagem tão alegre e tão especial me fez pensar a relação entre minha vida e meu corpo. Há tempos que ele existe como presença forçada, por vezes invasiva. Já o conheço, já brigamos e nos desentemos bastante ao longo dos últimos anos, mas faz muito tempo também, que estamos em paz. Sub judice.
Não reclamo, agradeço.
Agora, seguramente já entrei em nova fase, sem dores, mas com menos equilíbrio. Além de menor velocidade. Acredito que se completem, que necessitem um do outro. Agora meu corpo brinca menos, pede respeito, pede cuidado, não discuto. Mas… preciso me habituar.
Ultimamente novas demandas exigem uma abordagem mais atenta. Procuro olhar com interesse, pois tudo isto é novo e sempre fui muito curiosa. Se perder a curiosidade, um dos últimos baluartes, o envelhecimento será fatal.
A relação de Paraty com meu corpo vai além. Conheço e frequento a cidade desde muito moça, a cidade sempre me abraçou, foi palco de momentos inesquecíveis de diversão, amores, aventura, beleza, perigo, lugar de gente jovem, para quem o futuro não existe, só o presente.
Cidadecorpo um só ser. A cidade moldando o corpocidade.
A cidade está em decadência, continua maravilhosa, mas em decadência, o rio infectado, nas tardes do por-do sol, o cheiro de esgoto invade os lugares, os terraços os jardins, contamina o aroma das flores…as pedras soltas, os velhos mal se equilibrando, resistentes, entretanto, em renunciar ao que um dia foi nosso, beleza, prazer, equilíbrio…
Nestes dias pensei se vou ou não retonar à Paraty. Não preciso resolver agora. O cansaço diria que não, a alegria diz que sim.
Os judeus, ao se despedirem, têm o costume de dizer, Ano que vem em Jerusalém!
Ano que vem em Paraty!
Sylvia querida! Que alívio saber que não estava sozinha com o meu temor em cair. Desde que tive o rompimento do meu ligamento cruzado anterior, fiquei muito mais temerosa com as superfícies escorregadias, ou desalinhadas.
Adorei “A cidade moldando o corpocidade”.
Agora, seria bom os organizadores da FLIP, terem a delicadeza de organizar fora do Yom Kipur. Infelizmente esse ano não deu para ir nem para Jerusalém, nem para a FLIP. Beijo grande.
Silvia, bela crônica cruzando corpos e pedras em Paraty. Parabéns!
Sylvia querida, adorei seu texto. Frequentei Paraty a partir de 1971com minha estão namorada agora esposa. Já não posso mais dizer “O ano que vem em Paraty”, meu corpo exigiu a separação.
Sylvia, é impossível ler seu gostoso texto sem reviver as alegrias e agruras de Paraty e da Flip. No geral a maioria do meu corpo tem boas memórias. A grande exceção são os joelhos que, por eles, jamais chegariam perto novamente daqueles pés de moleque.
Ah o chão de Paraty! Sempre um desafio. Ah a Flip sempre um delícia! Ah seu texto, muito gostoso.
Sylvia, querida
How True!
Nao fui a Paraty por conta do escorregadio dos pés de moleques e a má sensação, constante, que pavimenta esta festa alegre e tão importante para
quem se dedica à escrita e literatura.
Porém é uma das mais vergonhosas lembranças da nossa história que está inscrita em cada uma dessas pedras. Nao gosto do que senti em relação ao fato.
Além disso, senti-me atropelada pelo tsunami de gente . Medo na verdade!
Sua vontade – e sinceridade – é tocante!
Sim, o corpo, esta nossa cidade cheia de impressões e dores, nao dá mais conta.
Gostei muito.
Beijo
Cara Sylvia, você nos trouxe uma prazeroso e reflexivo passeio por Paraty e pelos limites e meandros do nosso corpo perecível. Para ti e para nós, leitores, esse é um passeio sempre necessário. Parabéns!
Este texto nos faz vivenciar toda a vibração, a energia da Flip e todos os seus estímulos intelectuais. Preciso ver se lá vou o ano que vem … Mas será um esforço: morro de medo de grandes aglomerações de pessoas. Este trauma me vem das minhas vivências no interior do Brasil e no PNUD onde ajuntamentos de pessoas sempre representavam problemas … Adorei a referência ao famoso pé de moleque e ao diálogo que devemos instaurar entre nós e nosso corpo quando envelhecemos … É uma arte preciosa pois precisamos deste diálogo para envelhecermos graciosamente. Quando fui a Parati , eu era menina moça e correr nas ruas e saltar por cima dos pés de moleque não era problema. Agora, certamente, o andar naquele piso seria mais difícil. Mas o que muito gostei do texto foi o final: talvez Parati tenha sido deteriorada e poluída, talvez o pé de moleque apresente desafios mas a vontade de ir a Parati e participar da FLIP tem de prevalecer sobre as demais questões e o corpo entende isso, até certo ponto.