Um dia, crônica de Bettina Lenci

O céu violentado de cinza esparramou-se nos meus pulmões, as partículas de violência alojaram-se na garganta e a respiração tornou-se curta. 

Sim, claro, em uníssono, a razão deste efeito devastador nos terráqueos é divulgada e aceita como suficiente: ninguém se mexe para impedir a queima das florestas! Eu não avisei? Dizem, após a exclamação. 

Mas por mais que esteja inclinada a colocar minha colher nesse caldo grosso de fuligem, não é este o assunto de hoje, tampouco a sustentabilidade do planeta, nem as ameaças de fim do mundo e menos ainda assumir como humana que a culpa é só minha!

Passando mal, encontro-me no PS do hospital e aguardo, com os demais infelizes acometidos dos mesmos sintomas, pacientemente, para ser atendida. A consulta é rápida, o veredicto e a receita idem: água, muita água, colírio, inalação, umidificador de ar e cortisona com antibiótico. 

Feliz com o diagnóstico já conhecido por todos, mas já devidamente documentado com antibióticos, paro na primeira farmácia, ansiosíssima para obedecer imediatamente à receita passada.

— Não, senhora. Os umidificadores estão em falta! responde a gentil atendente. 

— Como assim? indago.

— Pra senhora ver. Esgotou! Também com uma secura destas! Pela décima vez naquele dia, obriguei-me a concordar e confirmar o ar rarefeito daquela tarde.

— Um copo d’água, por favor, vou tomar já estes antibióticos!     — apavorada que pudesse ter um troço ali mesmo.

Choveu, fiquei em casa, tomei tudo direitinho, fui melhorando sem ter que voltar para o PS. Porém… comecei a sentir enjoos persistentes, cãibras e cólicas. Ligo para o meu médico e ouço: — É… com esta secura que tá hoje só o antibiótico funciona. Tome o omeprazol que vai passar.

Conclusão: tomei o tal do anti enjoo depois das refeições, mas era para tomar antes, o que só fez piorar o quadro geral. Na hora me conformei aceitando o descuido ao lembrar que havia, dois dias antes, completado 79 anos que, logo, serão arredondados no sobrenatural número 80. 

Acompanhada daí para frente com este pensamento poluidor, feito a fumaça nos meus pulmões, me predispus a acompanhar uma enxurrada de obrigações que me informam, onde quer que olhe, mova ou ouça, ser imperioso re-aprender a vida em todos os sentidos, acrescidos dos exercícios cognitivos para driblar o diabo do Alzheimer, tão miseravelmente explorado quanto tomar um sorvete na esquina e, no lugar de lambê-lo com a língua, confundir-se e colá-lo na testa.

Mas apanhei-me nada receptiva ao bombardeio obrigatório. Interceptei as informações, ora com raiva, ora com desprezo, ora desinteressada porque o nível de dificuldade física que envolve uma pessoa de idade de viver conforme o padrão, irreal, que a mídia comanda, é altamente indelicado,injusto e cruel.

Sentir fundo o desconcerto, a humilhação, ouvir o ruído da queda espancar nos seus tímpanos ao tropeçar e bater a cara, a costela, o corpo, é uma deprimente realidade para o velho que se estatelou contra o chão duro. 

É nesse preciso momento, que o envelhecimento, inexoravelmente, toma consciência da real dimensão do tempo e da sua transformação de jovem para velho. Dói! Física, afetiva e moralmente. Não existem sensações virtuais ou respostas plausíveis da IA. 

É simplesmente humano. Nada mais do que humano! 

E assim, com os pés firmemente plantados no leito do rio, deixo as águas cristalinas lavarem gentilmente meus pés. Não me movo! 

Ficar ali, eternamente plantada, sublimada pelas águas que correm, contemplo o silêncio!

Deixei a mídia falando sozinha!

3 comentários

  1. Excelente, Bettina! O humano nada mais do que humano estará cada vez mais desconectado da humanidade?
    Uma dica, eu tenho há muitos anos umidificador no quarto, faz muito bem principalmente quando ligo o AC.
    Beijos

  2. Bettina, você produziu uma crônica na melhor acepção do gênero: fluida, espirituosa, convidativa. Daquelas que pegam o leitor pela mão e o conduz a passear pelas inquietações do cronista. Parabéns!

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