Clube dos Escritores 50+ Zulmara Salvador Visitante

A VISITANTE, conto de Zulmara Salvador

– Posso sentar aqui um pouquinho no canto do banco?

– Uai, claro, né? Mas a senhora tem certeza?

– Tenho, tenho. Estou bem cansada.

– Ah é. Se vê. Vem de longe a senhora? A pé?

– Estou andando um pouco. Só preciso descansar. Posso?

– Pode sim, pode. A senhora qué uma água? Essa aqui do galão é limpa. Peguei ali no boteco do Freire. Meu amigo. Ele me dá água e me deixa usá o banheiro… enquanto os cliente não chega, né? A senhora não tem medo?

– De quê?

– De mim.

– E por que teria?

– Uai. Todo mundo tem meio medo da gente, da minha cara sem dentes, do cachorro sarnento.

– Ele morde?

– Não. O coitado nem tem mais dente. Que nem eu.

– Pena. Cachorro sem dente sofre mais que gente. Mais que gente sem dente.

– Aí a senhora falô coisa certa, viu? Eu me viro. Ele fica lambendo os osso que o Freire dá, num desespero.

– Pois é. Coitado.

– A senhora vai longe ainda?

– Logo ali. Mas tem ladeira para subir.

– A senhora não qué mesmo uma água? Tem copinho de plástico aqui. Tá limpo ainda. No saquinho.

– Vou aceitar, sim. Obrigada.

– Nossa…

– O quê?

– Acho que faz uns dez ano que ninguém me fala “obrigado”.

– E por quê?

– Acho que nunca mais dei nada pra ninguém…

– E antes o senhor dava?

– Olha se dava! Tinha o que dar, né? Dava o salário inteirinho pra patroa, dava beijo nas criança na porta de casa, antes de ir pra escola, dava satisfação pro patrão das parede levantada, dos conduíte instalado, das canaleta. E ele falava: “muito bom. Obrigado.”

– O senhor era bom no trabalho.

– Era viu, dona!

– E o que aconteceu?

– Não sei. Foi de repente.

– Ah. Isso é muito normal.

– E a senhora, desculpa perguntar, tem casa?

– Tenho, tenho sim. Ainda tenho. Acho.

– Ah, que bom. É bom tê casa. Dormí debaixo do carrinho é duro demais. No verão passa. Mas no inverno eu nem conto pra senhora, viu?!

– Imagino.

– E a família da senhora tá esperando a senhora lá, né? Vai chegá cansada, tomá um banho, vê a novela no sofá. Muito bom tê casa.

– E o senhor perdeu a sua como?

– Não sei. Foi de repente.

– Ah…

– Eu nunca tomei cachaça.

– Que bom. Faz muito mal para a saúde.

– É.

– Tem uma bombinha ali. É cachaça?

– Só tomo pra puxá o carrinho. É muito pesado.

– Ajuda?

– A gente vai puxando e nem sente. O pé dói sempre.

– Imagino.

– A senhora devia voltá pra casa. Já tá escurecendo. Chega o marido e cadê a janta?

– Pois é… Pois é. Eu nunca fui muito boa para cozinhar.

– Ah…

– A senhora qué mais um pouco de água?

– Não, não. Obrigada!

– Acho que a senhora tá meio cansada mesmo, né? Olha que eu podia ajudá: a senhora senta no carrinho, ali atrás, me diz onde mora e eu puxo e levo a senhora lá. Vai me fazê muito gosto, sabia?

– Você é mesmo um homem gentil. Onde estão sua mulher e seus filhos?

– Voltaram pra Minas. Eu ia depois. Mas não deu. Fiquei por aqui mesmo.

– Ah! Acontece.

– Qué a carona pra casa? Eu levo.

– Não, não. Posso ficar mais um pouco?

– Pode sim.

– Dona! Eu tenho que ir. A polícia não gosta que eu fico aqui de noite, que os bar chique vai abrí. Tem certeza que não qué uma carona?

– Tenho. Posso ir andando com você?

– Uai. Pode, claro. Mas e a sua casa? Seu marido? Seus filho?

– Você acha que é melhor eu andar atrás da carroça, com o cachorro, ou ao seu lado?

Zulmara Salvador, Meio Ambiente, uma Sátira, Editora Ofício das Palavras

11 comentários

  1. Zulmara, eu quero te agradecer e agradecer ao senhor da carroça. Da meu obrigada a ele, da? Quero ir sentar no banquinho com vocês. Tocada, com um nó na garganta.
    Obrigada
    Beijos

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