Este texto é para minha mãe e representa meu desejo de que seja eternizado naquilo que ela mais apreciava, a palavra, um pouco de sua fulgurante passagem pela vida.
Como Pelé, que era o Edson também, Dona Flora tinha duas identidades. Ou mais. Talvez muitas mais. A Dona Flora, a Dra. Flora, vocação de funcionária pública, a pernambucana, a judia, a morena de olhos verdes da juventude, retratada maldosamente, pelo enciumado Gastão de Hollanda, em Os Escorpiões, livro vencedor do prêmio literário José de Anchieta no IV Centenário de São Paulo.
Da Flora mãe, paradoxalmente, não gosto de falar. Já falei muito. Até lhe disse que o complexo edipiano no nosso caso era invertido: ela tinha complexo de Jocasta, isso sim. E ela ria, às gargalhadas.
Nada no mundo jamais valerá a milionária herança que me deixou: o amor aos livros, às letras, às frases e o fato de ser um razoável “causeur”. O resto, como dizia, são as coisas que o dinheiro compra e, portanto, que qualquer um pode ter. Ou não.
Por ocasião do ritual do sepultamento, o rabino pediu a mim e à minha irmã Rose, que descrevessemos Flora. Quem a conheceu sabe da dificuldade da tarefa que nos foi solicitada. Descrever Flora é coisa impossível. A única pessoa que poderia fazê-lo é aquela hoje lembrada e que, à sua maneira, resolveu a questão sozinha, como se vê no texto intitulado “FM entrevista FM”, uma entrevista com ela mesma, Machman de solteira, nome que também usava para assinar as crônicas publicadas no Jornal do Commercio.
Sem dúvida, sobre todas as coisas e sobre grande parte das pessoas a minha mãe gostava de si e proclamava isto aos quatro ventos, sem falsos pudores ou modéstia.
Também amava os pássaros, o mar, o Recife, o Rio de Janeiro, Paris, sua família, seus amigos. Amava a literatura. Amava o povo judeu e odiava os que lhe faziam mal.
Malditos, vociferava, declinando-lhes a origem.
Amava os colares, os brincos e os sapatos. Estranhamente, amava o futebol, e nunca entendi na verdade essa paixão, que herdei. Amava as noites, as tardes de Teresópolis e suas montanhas, em cuja contemplação, menino, muitas vezes a surpreendi, olhando para o nada, sem dizer palavra e, certamente, exercitando sua prodigiosa mente. Também nesses momentos, ainda criança, julguei-a mal, quando voltava da feira ou de qualquer outro lugar e a via olhando para o mar por longos momentos, antes de começar a escrever à máquina a crônica do dia seguinte.
Quando o jornal chegava, pensava, com horror, que tinha mãe mentirosa. Pois a cena que eu assistira no dia anterior, cotidiana e prosaica, como a compra de um quilo de chuchu ou de cenoura, ali se encontrava descrita com todas as cores do imaginário, rica de detalhes, diálogos e preciosidades literárias que eu não vira, nem percebera.
Nos maus momentos, nunca permitiu que o abatimento tomasse conta de seus filhos ou que a tristeza tomasse conta de sua casa. Se ela mesma se abatia, nunca saberemos.
A explosão de força e vida que dela se originava, muitas vezes poderia ser confundida com ira ou angústia, mas nada mais era que saudável e oportuna reação aos infortúnios e à tristeza. A sua opção era pela luta e, se a vitória não foi constante em sua vida, tampouco chorou suas derrotas.
Amava a vida e a vida a amava. Entendiam-se, ela e o universo. De que maneira, não sei. Talvez pela palavra, talvez pelo espírito que traduziu em textos sutis, irônicos, combativos, inteligentes, bem ou mal-humorados, leves ou pesados, de acordo com a inspiração ou o momento.
De minha mãe guardo isso, a imensa riqueza que legou a seus familiares e amigos: a força, o espírito, o amor à vida a alegria de viver, e sua maior fortuna, incomensurável, a cultura universal, marca do povo ao qual pertencia com orgulho.
Quando a gente abre a cortina do passado, como na Aquarela do Brasil, todo dia é Dia das Mães e saudoso, sem pranteá-la, exalto a sua memória e nela homenageio essas incríveis mães de todos nós, cada uma especial e universal à sua maneira e que merecem todas ver cumprido o preceito do mandamento: honrar pai e mãe.
As crônicas de Flora Machmann estão reunidas no livro Chuva Miúda, publicado pela editora Garamond e à venda na Amazon
Que saudade daqueles tempos de D Flora e D Judith, onde a alegria da simplicidade e da pureza reinavam. Um Viva para nossas mães!
Bjs