Vai pro gol!!
O alerta obrigatório antes do chute contra o gol adversário continua o mesmo, mas cada época, cada local e cada geração associa esse grito a diferentes imagens e recordações. Um grito que desperta emoções.
Voltemos à São Paulo da década de 60. Mais especificamente à tranquila rua
Guia Lopes na Mooca. A maior parte da molecada usava o meio período em que não
estava na escola para brincar na rua: jogar bola, andar de carrinho de rolemã, empinar quadrados e “capuchetas”, bolinha de gude, construir pequenas barragens no meio fio e por aí afora. Só havia uma atividade que rivalizava com as brincadeiras de rua: o Jogo de Botão ou Futebol de Botão.
Eu aprendi a jogar lá pelos oito anos. Na época já havia se iniciado uma transição importante: os “jogadores” não eram mais botões de casacos como tinha sido o padrão para gerações anteriores. Agora predominavam os celuloides, embora um ou outro botão real – ‘emprestado’ de alguma japona ou sobretudo – ainda pudesse entrar em campo.
O que eram os celuloides? Eram aqueles “vidrinhos” dos relógios. Os plásticos que os constituíam iam ficando opacos com o tempo, o que obrigava sua troca. Talvez algum filho de relojoeiro tenha sido o descobridor das virtudes dos celuloides como ‘botões’. O fato é que nós fazíamos periódicas visitas às relojoarias da Rua da Mooca
onde coletávamos safras de ‘atletas’ antes que fossem miseravelmente descartados.
Sim, já existiam “jogos de botão” vendidos nas lojas, mas eram todos iguais,não tinham personalidade. Desses jogos aproveitávamos apenas as traves, a ficha e a
bolinha.
Os celuloides formavam um mundo à parte. Como tinham formatos diferentes, tanto nos diâmetros como nas curvaturas e na maior ou menor opacidade, cada um era único. A essas características juntávamos nossas fantasias e intuições e criávamos os “atletas”. Alguns eram rápidos, ligeiros, outros habilidosos com jogo mais cadenciado. Havia os canhotos e os especialistas em cobrança de faltas. Claro, havia também os temperamentais, os violentos e os que faziam fita por qualquer entrada mais forte.
Costumávamos batizá-los logo que chegávamos das relojoarias. No meu caso, um ou outro botão recebia o nome de jogadores de futebol profissionais. A maioria eu preferia batizar com nomes inventados como Zuzuca, Tirocerto ou simplesmente Zézinho. Me lembro até de um celuloide que, sabe-se lá por que, veio com um pequeno orifício no centro: chamei-o Furadinho. Deu um bom meio campista.Cada moleque formava sua seleção de celuloides e agregava o goleiro – uma
caixa de fósforos encapada com durex colorido. Pronto, todos tinham seu time e realizávamos o campeonato de botão da rua. Era bem organizado: tinha tabela de jogos e classificação, bem como jogos ‘dentro’ e ‘fora’ (na casa do adversário). Já os ‘campos’ não tinham uma norma. Em geral eram chapas de compensados de madeira, mas podiam também ser chãos encerados.
Para definir a seleção que ia para o campeonato da rua, nós tínhamos nossos campeonatos internos. Nesse aspecto, o jogo de botões assumia seu lado individual, à semelhança dos videogames atuais. Cheguei a ter dez times, com seus onze jogadores e mais quatro ou cinco reservas. Eram cerca de 150 ‘atletas’ e eu conhecia
o nome e a ‘personalidade’ de todos eles. Nesses jogos internos eu fazia diversos papéis: era técnico e jogador dos dois times, locutor esportivo e torcida que vibrava nos lances mais importantes. Claro, era também o juiz. Juro por Deus que procurava ser imparcial.
O tempo passou. São Paulo cresceu e os carros tomaram as ruas. As
brincadeiras das crianças encontram outras formas e outros espaços para criar seus
mundos paralelos. Jogo de botão com celuloides usados, não mais. Ainda por cima
numa era de smart watchs com suas telas luminosas ou mesmo de relógios
analógicos com acabamento de ‘vidrinhos’ duros e super-resistentes. Verdadeiros
cristais, parece que nunca ficam velhos. Devem jogar muito mal.
Carlos Fernando Castro – jan/24
Carlos: guardo até hoje meus três times de botões de casacos antigos que jogava futebol no chão e ganhara de meus primos bem mais velhos. Fui bom nisso ! Esperava ensinar aos netos, mas eles, da geração incompreensível para nós, só apertam os botões do celular….
Éder, que surpresa. Não suspeitava desse seu passado de glórias no botão.
Ah, que delícia de texto! Também pratiquei esse esporte por décadas, nos mais variados campos, desde as mesas oficiais, verdadeiros Maracanãs, como nos campos de varzea dos assoalhos de taco, onde os botões, não raro, empacavam nas frestas. Os vidros de relogio no Rio eram chamados de vidrilhas e também pedidos nos relojoeiros.. Em tempo: os goleiros eram caixas de fósforos com chumbo de pesca dentro, antes de receberem o esparadrapo .. Ah, tenho meu time até hoje , em uma caixa de metal, todos concentrados aguardando adversários…
Que legal Carlos. Quem diria que no Rio os celulóides eram vidrilhas. Você lembrou bem do enchimento dos ‘goleiros’ com chumbinhos. E salientou um ponto fundamental: o amor pelo jogo de botão nunca morre.
Adorei seu texto! Eu lembrei tanto dos botões dos meus irmãos, que depois de muita insistência permitiam as meninas entrar no jogo, eu adorava!
Obrigado Lilian. Realmente naquela época as meninas não participavam dos jogos. Se fosse hoje certamente já haveria uma Liga Feminina…
Estava pensando aqui com meus botões: quando o Carlos de Castro nos brindará com seu livro de crônicas?
Espero que não demore, Carlos. Você tem muito talento pra contar histórias cotidianas, extraindo delas um encanto, uma sutileza.
Voltando aos botões da sua saborosa crônica, eu os conheci muito bem na infância. Fui bom jogador, campeão de torneio e coisa e tal.
O meu tempo de “botonista” é mais recente que o seu, pois já usávamos os times de plástico ou acrílico, que eram vendidos em saquinhos e com os emblemas autocolantes dos times. Como os goleiros eram pequenos (e facilmente vazados), nós também os trocávamos pelas caixas de fóstoros, revestidas por folhas de caderno e preenchidas com areia (metodologia vária). Um forte abraço. Estou esperando o livro.
Obrigado Luciano. Começo a desconfiar que existe uma correlação direta entre gostar de jogar botão e gostar de escrever. Abraços
Texto fluente e abrangente . Viajamos no tempo . Fui conferir agora minhas caixas de botão . Botões de roupa e fichas de ônibus lixadas , que foram do meu pai , as tampas de relógio e as preciosas fichas de poker que comprávamos no O Az de Ouro , rua Boa Vista , Centro de SP , e que eram cuidadosamente lixadas só com água e um pouco de sapóleo nas pedras de mármore dos degraus da casa da vovó , A inclinação da borda feita com canivete e a sua espessura , definia sua posição no time . Todo acervo da garotada tinha personalidade própria , conforme discorre o autor . Tenho também os belíssimos botões tipo madre pérola que eram fabricados aí no Rio de Janeiro .Depois vieram os times industrializados de capas Brianezzi do meu filho . Recentemente limpei todo o acervo e alguns lustrei com graxa de sapato incolor , para deslizar melhor . Obrigado Carlos Fernando , por nos permitir reviver época tão encantadora de nossa infância e juventude .
Ricardo C. Forghieri – SP
Agradeço suas palavras Ricardo. Olha aí quanta coisa podemos resgatar da infância. Abraço