Questões Vetoriais (Crônica do engenheiro doido),
por Carlos de Castro

Coincidiu de São Paulo atravessar uma conjunção astral nefasta. O tráfego mais intenso da época natalina encontrou pela frente um conjunto de interdições viárias típicas de períodos pré-eleitorais, desenvolvidas pelo DMOL – Departamento Municipal de Obras Lentas. De maneira que, para não pirar enquanto pratico um pouco mais de rastejo veicular, observo o ambiente em busca de detalhes que normalmente passariam despercebidos.

Foi quando a placa de contramão atraiu meu olhar.

A flechinha está lá, toda orgulhosa, impedindo que os veículos possam escapar do trânsito parado pela calma travessa à direita. Me ocorre que essa flecha é parente dos vetores. Entretanto, pode-se dizer que é uma prima pobre: não tem a potência dos vetores. Esses sim, são “flechas” que exploram todas as possibilidades de módulo, direção e sentido. Os vetores, velhos vetores, há tempos não atravessavam minha cabeça. Seriam úteis ainda?

Engraçado, o trânsito parado parece que acelera a imaginação. Ela sai voando, conectando mundos: da contramão para os vetores e deles para “story lines”. Sim, elas mesmas: aquelas frases mágicas e concisas que sintetizam a história que se quer escrever numa única linha.

Vetores foram desenvolvidos na matemática e na física, mas são versáteis. Não tem preconceitos. Diria mesmo que adoram ajudar e quem sabe podem dar uma mãozinha na definição de “story lines”. Por que não? Seria uma forma visual, gráfica, de ressaltar a intensidade de conflitos.  Estaria delirando?

Vamos ver. Resolvo arrancar mentalmente a flechinha de contramão do círculo vermelho que a prende. Calma, você agora é um vetor! Trabalhemos um pouco. Temos tempo: o trânsito continua a operar no modo “parado quase devagar”.

Tenho uma vaga ideia de história na cabeça a respeito das agressões à Amazônia. Que tal esboçar sua “story line”? Começo por escolher uma personagem central, no caso uma frondosa e centenária árvore que se destaca naquele fundão da floresta. Uma Samaúma, rainha da mata. A árvore, com sua forte personalidade, será expressa pelo primeiro vetor.

Em seguida foco no conflito básico: uma reação do mundo natural à invasão de bandos de garimpeiros inescrupulosos. Uma rede interligando todo o mundo vegetal vai iniciar essa reação e atrair também participantes do mundo animal. O magnífico livro “Revolução das Plantas” do Stefano Mancuso, vai me ajudar na pesquisa.

Voltemos aos vetores. Caderninho e lápis na mão, começo a rascunhar, colocar no papel “flechas” que estão girando na minha cabeça. A personagem central, a árvore frondosa, precisa ser melhor caraterizada. Apesar do tamanho, a característica que mais chama a atenção é o fato de ser introspectiva, silenciosa. Todos os sons e barulhos da mata estão ao redor dela, mas não nela própria.         

Estamos num rascunho, fiquemos, por enquanto, com essa única característica da personagem central. Surge uma primeira representação vetorial, como o corajoso leitor que enfrenta essa crônica pode observar:

Viram? Daí para a frente tudo é possível. No exemplo, podemos introduzir outras qualidades que vão moldar a “personalidade” da árvore e ficarão expressas no vetor resultante.

Passemos ao conflito: a grande reação de forças da natureza contra a invasão de garimpeiros. Toda a vida da floresta participa: fungos, plantas e aranhas venenosas, jacarés, macacos, onças, cobras e lagartos. Podemos pedir uma ajudinha de enxames de mosquitos transmissores de malária, dengue, chikungunya e o escambau. Surge uma primeira ideia de “story line”: “árvore silenciosa lidera reação da natureza contra garimpeiros”

Vejam só. É possível pensar em diferentes intensidades dessa reação: somente contra o grupo de garimpeiros ou extensiva também a toda humanidade idiota que destrói as florestas. Tais diferenças de intensidade estariam expressas no módulo do vetor reação. Podemos até convencionar relações entre os sentidos das resultantes e o tipo, o caráter do texto: sentidos ascendentes indicariam narrativas digamos “otimistas” enquanto sentidos descendentes poderiam ser associados a distopias, contos de terror, apocalípticos e congêneres.

Enfim, loucura ou delírio, talvez os tais vetores literários sejam úteis para exprimir graficamente a história, de maneira clara e concisa. Pelo menos na cabeça de um velho engenheiro como eu.

Daí para a frente mãos à obra, é “só” escrever…

Opa, o trânsito começou a destravar. Hora do cronista parar de fabular e voltar para a pista do mundo real. Devolvo minha flechinha para a placa de contramão. Briosa, ela brilha de novo dentro do círculo vermelho. Acho que ninguém notou sua ausência por alguns instantes.

 Agradeço a paciência de todos que me acompanharam no congestionamento. Como recompensa, achei um trecho de poema do grande e eterno Aldir Blanc, no qual um “vetor” participa. Confiram:

Olhar nº2

                          (Aldir Blanc)

Quando esse olhar dispara a seta

No sentido em que ele flerta

Mata o riso do Poeta

Mas é desse riso torto morto,

Dessa dor além do corpo

Que um poema sai do porto

E quanto mais ele navega

E quanto mais a névoa cega

Eis que mais enxerga meu amor

E ele pode ir aonde eu não vou.

7 comentários

    1. Sylvia, o Audir pode sempre nos salvar. Achei linda essa imagem do seta que o olhar dispara em busca do amor e pode ir até onde eu não vou

  1. Mais uma genial crônica paulistana de Carlos de Castro. Essa acrescida dos saberes matemáticos( e metafísicos) do autor. Acabei de lê-la me convencendo da crença pitagórica de que os números( vetores e congêneres) representam a essência de todas as coisas.

  2. Obrigado Luciano. Você alerta para algo que eu não tinha pensado. Quem sabe valha a pena mesmo enveredar pela procura da poesia dentro da matemática.

  3. CARLOS,
    acabei rejeitando a matemática, digo aritmética, por devaneios sem vetores. Mesmo lendo seu texto, nao sei bem o que significa vetores.! Imaginei o Lula
    vetando o marco temporal….
    então apesar de nao ter entendido – matematicamente a flecha de contramão – pessoalmente, justamente por desconhecer vetores, – teria adentrado na contra mão…,quis me parecer que você menciona o uso do vetor para se criar uma story line. Será que vetor tem haver com criatividade para quem nao é engenheiro?
    Enfim, ..
    como engenheiro ( acham engenheiros incapazes de poetar) você e um belo cronista poético.
    abraco
    b

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *