Sou conhecido em algumas rodas como pesquisador e ainda preservo minhas faculdades mentais para ser ouvido e lido. Mas ando tão incomodado com certos fatos inusitados que achei melhor contá-los esperando não ser listado entre os malucos irreversíveis. Vamos a eles.
Há algum tempo havíamos comido uma deliciosa salada num restaurante especializado. Me queixei à minha mulher que houve uma coisa estranha, pois salada – que não tem possibilidade de fazer qualquer mal -provocou um certo ruido em meu estômago, felizmente transitório, e sem qualquer repercussão posterior. E ficou nisso, exceto pelo fato de que algum tempo depois uma salada semelhante determinou ruido parecido, e também inconsequente.
Mas, pesquisador que se preze não quer saber de problemas sem obter resposta. Talvez houvesse ovos de helmintos (parasitas intestinais) na salada, porém exame de fezes em laboratório confiável nada revelou.
Eis que certo dia, comi em casa salada semelhante e os mesmos sons foram audíveis apenas para mim. Aproveitei meu estetoscópio, e atento coloquei-o sobre o abdome a ouvir o estômago. Conheço bem o que nós, médicos, chamamos de ruídos hidroaéreos provocados por gazes intestinais e posso garantir não eram os mesmos. Deram mais a impressão de gnomos dialogando dentro de minha inocente barriga. Claro que, como todo idoso, aposentado, e sem mais a fazer que não a viver preocupado com seus dejetos, examinei atentamente os produtos intestinais evacuados nos dias subsequentes e nada de anormal apareceu (desnecessário descrevê-los em minúcias).
Eis que um certo dia coloquei sobre a pia um pepino maduro e comecei cortá-lo em fatias bem finas destinadas a nosso cão doméstico. Garanto que subitamente ouvi um estranho ruido, como um gemido, fugaz, que não partiu do cão aflito à espera no chão da cozinha. Parecia ter vindo do pepino, mas sendo breve e suave, não me preocupei com ele.
Logo depois vi nossa hábil doméstica fazendo uma salada de muitos ingredientes, contendo desde palmito, tomates, cenoura, erva doce, alface, pepino, cebola, etc., e ao adicionar olivas pretas preservadas em vinagre; quando misturou tudo, novamente para minha exasperação, garanto ter ouvido como que um gemido tímido surgindo da vasilha. Achei que o misturador estivesse com algum defeito, prontamente negado por minha atenta funcionária. A digestão da salada ocorreu sem incidentes, exceto pela teimosa exaltação de minha curiosidade.
Tempos depois, eu mesmo, sozinho em casa, misturei os mesmos ingredientes, mais sal e azeite e comecei a refeição, mas ao acrescentar a ela algumas azeitonas, asseguro que gemidos estranhos eram audíveis no estômago. Desta vez, recorri novamente ao estetoscópio, tranquilo por não haver ninguém em casa que estranhasse minha “ausculta gástrica”. Agora as dúvidas se dissiparam: de fato meu ouvido não me enganava e eu não alucinava; eram sons breves, suaves, porém insistentes, como que uns passarinhos emitindo ruídos, ásperos no início, chorosos em seguida, e logo depois, silêncio. Deduzi então que o conteúdo do estômago se esvaziara para o intestino, e que seus responsáveis, vulneráveis a minhas enzimas digestivas, haviam perecido até se transmutarem em fezes.
Aos que me leem atentos e até incrédulos, entendam que como pesquisador não aceitaria deixar passar o problema sem exame exaustivo. Caprichosamente passei a ir ao supermercado e feiras todas semanas para estarrecimento de minha mulher com tal comportamento inusitado e subitamente tão exemplarmente obsequioso. Mais ainda, inábil na cozinha, exceto para fritar ovos e passar o café, passei a cultivar o hábito de fazer saladas, sem deixar perceberem que de fato eram experiências laboratoriais. Poupo o leitor de listá-las, mas asseguro que todas foram rigorosamente anotadas num caderno. Em resumo, descobri após muitos meses de investigação que as saladas verdes produziam ruídos digestivos e até exalavam uns odores imperceptíveis a meu nariz, mas certamente notados pelo cãozinho: este ficava em pé fustigando minha perna com o focinho erguido e de jeito suplicante, assim que à mesma panela eu acrescentava vinagre ou azeitonas nele preservadas. Aprendi exatamente que essas mesmas misturas vegetais se manifestavam assim que chegadas a meu estômago. Para garantia da eficiência experimental indagava à minha mulher, embora muito desatenta, se a salada produzia algum ruido e ela, displicentemente, respondeu que talvez isso ocorresse.
Foi então que certo dia em que ninguém estava em casa resolvi fazer a experiência “cheque-mate”. Botei todos os ingredientes da salada na panela larga. E o estetoscópio no ouvido, antes e depois do vinagre. Em dias anteriores tive o cuidado de ir a meu amigo otorrinolaringologista remover cera de ambos ouvidos externos. Queria meus pavilhões auditivos muito afinados. Meus amigos leitores, garanto-lhes que ouvi como que soluços e que esses partiam dos ingredientes verdes e não dos coloridos em vermelho ou amarelo, como tomates, pimentão e cenouras. Tais soluços foram breves, como os que ocorriam em meu estômago.
Ansioso fui ao computador em busca da literatura científica, esperançoso de que nada encontrando mandaria meu relato à Nature ou Science a imaginar sonhando que depois disto a ser recebido com ovação em Estocolmo, seria apenas uma questão de tempo.
Qual não foi meu desapontamento ao encontrar literatura em boas revistas científicas e até em livro que mostro ao final desta, mas que não li ainda. Incito o leitor a uma leitura dessas publicações e, se incrédulos, que repitam minha experiência tão simples e eficiente. Estômagos atentos todos tem, e de estetoscópio empresto o meu após lavarem as orelhas. Se eu estiver mentindo, creiam, seria a primeira vez. Deduzo que a melhor solução é nunca serem vegetarianos estritos para não morrerem de sentimento de culpa cometendo atrocidades. Me safei desta sempre onívoro. Uso meus dentes caninos apenas para rasgar churrasco, sem mais uma só folhinha de alface. Os vegetarianos iludidos matam os vegetais já antes de comê-los, portanto, são criminosos. Não sendo mais um deles, também nunca mentiria.
- Itzhak Khait, Ohad Lewin-Epstein, Raz Sharon, Kfir Saban, Revital Goldstein, Lilach Hadany et al. Sounds emitted by plants under stress are airborne and informative. Cell. 2023 Mar 30;186(7):1328-1336.e10. doi: 10.1016/j.cell.2023.03.009.
- Zohreh Haghighi Kafash, Shahrzad Khoramnejadian, Ali Akbar Ghotbi-Ravandi, Somayeh Farhang Dehghan. Traffic noise induces oxidative stress and phytohormone imbalance in two urban plant species. Basic and Applied Ecology. 60: 1-12 (2022)
- Monica Gagliano: Thus spoke the plant (North Atlantic Books, 2018). The Green Thread: Dialogues with the Vegetal World (Lexington Books, 2015). The Language of Plants: Science, Philosophy and Literature (Minnesota University Press, 2017).
Adorei Eder. Sempre senti muita dó das alfaces, tão lindas, que meu pai colhia na horta lá da chácara!
Quanta maldade, coitadinhas!
Bela pesquisa, doutor! Parabéns!