Blog Clube dos Escritores 50+ Palavra perdida

#crônicas
A PALAVRA PERDIDA,
por Lourdes Gutierres

A roseira na entrada da casa sobe em direção à árvore da calçada, há flores e perfume. Por entre as grades, avisto bancos no jardim, nenhuma presença, nenhum som. A mudez é interrompida ao meu toque na campainha. Espero a chegada de alguém. A casa não está vazia. Abriga pessoas idosas com autonomia restrita, dependentes de cuidados.

Pelo corredor chegam vozes: “Meu filho, agora só você e eu” — diz a mulher ao boneco de porcelana em seu colo. Outra senhora agita os braços, parece querer voar da cadeira de rodas: “Pedro, vem, Pedro, vai chover, venha!”. A de vestido estampado chega perto de mim: “Olha minha pulseira, olha minha pulseira” — e mostra três cordões em seu pulso, sorri.

Ela está na poltrona ao fundo da sala, com um cobertor nas pernas. A televisão ligada na parede em frente. Não consegue enxergar a essa distância sem óculos, sei disso, mas a música chega “quando eu estou aqui, eu vivo esse momento lindo…”. Olhos fechados, move os lábios, cantarola baixinho; estaria na cadência de lembranças? Toco em suas mãos com suavidade.

— Quem é você?

— Marta.

— Quem?

Está pálida e nota-se abaixo dos olhos o inchaço, as mãos tremem. Tento penetrar em seu silêncio. No diálogo entrecortado, sempre a mesma recordação.

— Eu quase casei com ele.

           — Quer ver a roseira florida?

— Não.

— Lá fora, vamos?

Procuro explicações de como chegou nessa situação. Difícil. Tudo aconteceu de repente, ela não comparecera à missa, nem tinha ido ao mercado, sequer fora jogar dominó na praça, o que costumava fazer todas as tardes, e não atendia nenhum chamado. Aflita, a vizinha comunicou: “Algo aconteceu, venham logo!”. Foi preciso a vinda do chaveiro, pois ela havia colocado enormes cadeados no portão da varanda. Àquela movimentação juntou-se a vizinhança, todos conhecidos de décadas, entre eles, a amiga Luiza. Lembro bem dela quando chegou radiante em certa tarde de domingo.

— Preciso de um leque, pode emprestar?

— Vai entrando, já estou pronta, só falta o batom; ah, o perfume, será que ele vem hoje?

— Com certeza, está calor.

Alegres, seguiram para o parque de diversões a algumas quadras dali.

O Parque Shangai ficava próximo ao Museu do Ipiranga e nos dias quentes atraía moradores da redondeza, principalmente jovens que circulavam de lá para cá, no vaivém onde os olhares se cruzavam, uma piscadela talvez, as mãos entrelaçadas ao final. Ali ela conheceu seu noivo Martinez, comerciante de armarinhos. Sempre se referia a ele pelo sobrenome, embora tivesse o mesmo nome do seu cantor predileto, Gregório Barrios: luna lunera, cascabelera/ ve dile a mi amorcito por dios que me quiera — o disco que não cansava de ouvir.

No consultório, o psiquiatra mostrou na imagem do cérebro manchas escuras. Apontou para uma maior ao centro, depois seus dedos seguiram para as bordas. Pela primeira vez diante de mim a tomografia de um cérebro — o da minha irmã mais velha. Por aqueles sulcos, a vida se definhando, era isso que ele queria dizer? Não conformada, indaguei suas premissas. Tudo em análise. Algum trauma recente? Sei que se trancou no quarto escuro e não queria ver ninguém. “Pode me falar dela”, pediu-me. Cuidou de mim quando pequena, me conhece mais que eu a ela. Discreta, guardava seus segredos. Entretanto, uma fatalidade ficou conhecida por todos do bairro — o noivo morto em seus braços.

— Vamos passear no jardim do Museu, a noite está tão linda, vamos?

Ele, relutante, parecia não se sentir muito bem, pediu um comprimido para dor de cabeça. Casamento próximo, enxoval quase completo, no anel de noivado a pedra turquesa reluzia. Sentados no banco, ele tombou no colo dela.

— Moço corre rápido, ele desmaiou, me ajuda, ajuda!

          Foi enterrado no dia seguinte. Desde então, ela cuidou de seu túmulo no cemitério de Vila Mariana, permanecia sempre limpo e com flores.

Entre as coisas dela, encontrei um antigo diário. Às suas indagações parece nunca ter encontrado respostas, as perguntas sempre se repetiam. Em outros homens encontrou características do falecido. No cobrador de um ônibus, reconheceu suas mãos. O mesmo olhar ensimesmado no caixa do mercado. E o primo da amiga, não franzia a testa igual a ele? Em qualquer sinal, a possibilidade de reencontro daquilo que a vida lhe havia ceifado. Permaneceu solteira.

Nunca quis se desfazer do enxoval. Havia sido comprado em prestações durante anos, não faltava quase nada — colchas de renda, toalhas bordadas, camisolas de seda. Do vestido de noiva, ainda guarda revistas com modelos em uma caixa desbotada. Durante o verão, costumava fazer a limpeza dos armários, tirar pó, colocar roupas no sol. Depois deixava pequenas trouxinhas perfumadas pelos cantos.

— Doutor, por que o senhor considera Alzheimer?

— Há sinais — as manchas pretas na tomografia.

Queria dizer a ele a minha verdade — o cérebro é plástico; e a vida, inconclusiva. Calei-me, precisava de mais evidências.

Lourdes Gutierres

A roseira na entrada da casa sobe em direção à árvore da calçada, há flores e perfume. Por entre as grades, avisto bancos no jardim, nenhuma presença, nenhum som. A mudez é interrompida ao meu toque na campainha. Espero a chegada de alguém. A casa não está vazia. Abriga pessoas idosas com autonomia restrita, dependentes de cuidados.

9 comentários

  1. Lourdes, muito intenso o seu texto, tantos sentimentos fortes, alguns dolorosos, outros de estupefação diante da última fase das nossas vidas, mas quase todos conhecidos e vividos por mim. Pude estar muito próxima de você. Belíssima narrativa

  2. Texto bem explicativo que expõe nossa vida em termos racionais, materiais, porém em todas essas vivências aqui narradas encerram valores imateriais de nossa verdadeira essência e esses preciosos valores de alguma forma permanecem indestrutiveis.

  3. Emocionante a crônica-conto, “A palavra perdida”.
    Poesia, música, tela de onde imagens e acontecimento emergem, perdas na perda do noivo, tão de repente e eternizada.
    Tenho lido seus textos, Lourdes, me encantam. Gratidão.

  4. Lourdes muito obrigada por me oferecer mais um pouquinho de você, da sua sensibilidade e expressividade! Lindo texto, experiência vivida, sentida e preciosamente expressada. Sabe que evocou na minha memória uma lembrança de você me mostrando fotos que você tirou fazendo experiências com luz e sombras, lembra?

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