blog Clube dos Escritores 50+ Blanche de Bonneval Fardas e dentes

#memórias
ENTRE FARDAS E DENTES,
mais uma história de Blanche de Bonneval

Estava voltando para casa tarde à noite na cidade de N´Djamena, capital do Chade, quando, de repente, vi ao longe na avenida um movimento de homens que pareciam estar brigando entre si. Para evitar problemas, resolvi continuar meu caminho pela trilha de terra que era bem mais segura, mesmo se muito isolada. 

No meio do percurso, o carro passou em cima de alguma coisa que furou um dos pneus dianteiros. O carro derrapou e caiu num buraco que não tinha visto e não tinha mais como sair dali sem ajuda.

Verifiquei se eu estava com os meus documentos na bolsa e suspirei aliviada: tudo estava em ordem …

Nunca era boa ideia – sobretudo neste momento de forte instabilidade no país – de andar sem identificação…

Pensei no que ia fazer…

Enquanto refletia, olhei para as moitas vizinhas e fiquei intrigada ao notar várias luzinhas amarelo-esverdeadas, muito móveis, cuja origem não conseguia identificar. Não pareciam ser vagalumes …

Quando quis abrir a porta, fui atacada por uma matilha de cães vadios que, famintos, se atiraram contra o carro, tentando me morder pela janela e a porta entreaberta. Entendi que as luzinhas amarelo-esverdeadas que vira até então eram os seus olhos.

Estes rafeiros, beges, de pelo curto, com patas e pescoços longos eram extremamente perigosos e não hesitavam em estraçalhar – e devorar – homem ou animal. Não era à toa que os militares saíam todas as noites para matá-los a tiros de metralhadora do alto dos seus Toyotas.  

Bom, pensei, se eu não sabia qual era a melhor solução nessa situação, esses cachorros me deram a resposta.

Permaneci no carro, olhando a lua se movimentar num céu que estava clareando com a proximidade da madrugada.

De repente, ouvi o barulho de um caminhão e vi a sua sombra alongar-se desmedidamente na minha frente com a luz dos faróis. Era um caminhão militar, cheio de soldados – que no Chade, são chamados de “combatentes”. Todos estavam armados até os dentes. Militares! pensei. Entre fardas e dentes, ainda prefiro me entender com as fardas. 

O caminhão parou e vários homens desceram intrigadíssimos e vieram ter comigo. Ouvi várias rajadas de metralhadora serem disparadas ao redor do meu carro assim como o ganido dos cães atingidos. Saí devagar do meu veículo.

Choukrane! (Obrigada em árabe chadiano) disse lhes com um sorriso. Se vocês não tivessem chegado, eu teria ficado a noite toda assim, ilhada no meu carro com esta matilha de cães ferozes ao meu redor.

Os homens ficaram um momento mudos, estudando a situação, olhando como eu me mexia, até que entenderam que eu realmente estava em apuros. Neste momento, caíram numa estrondosa gargalhada.

Mais confiantes, foram se achegando e contei-lhes o que acontecera. Um dos rapazes era o mecânico dos Toyotas do quartel Camp des Martyrs, localizado pertinho de casa. Depois de um breve exame, concluiu que o meu Toyota Starlet nada tinha de grave: era só trocar o pneu e empurrar o carro fora do buraco.

Agradeci muito aos homens e me perguntei o que podia lhes dar que os agradasse. Comprara antes da festa uma carteira com vinte maços de cigarros Marlboro na loja francesa DOM. Sabia que estes eram de difícil aquisição para os chadianos em vista do seu alto custo.

Sem uma hesitação, peguei a carteira e a ofereci aos combatentes. Um silêncio profundo caiu nesta hora e os homens me olharam como se eu fosse uma espécie de extraterrestre que acabava de aterrissar no seu planeta.

“A senhora está dando a carteira toda para nós?” perguntou-me o que parecia ser o comandante da turma, incrédulo.             

Olhei-o e sorri: “Acho que o que fizeram por mim vale mais do que isso. Vocês mataram esses cães famintos, trocaram o pneu do meu carro e tiraram-no do buraco onde o deixei cair inadvertidamente. E graças à vossa intervenção, ainda vou poder ter algumas horas de sono antes de ir trabalhar. Pode ser melhor do que isso?” 

“Aceitamos então o seu presente com muito prazer,” respondeu o comandante. “Esses cigarros custam muito dinheiro e são maravilhosos … Mas em troca, queremos levá-la até a sua casa. Já deu para ver que a senhora é meio atrapalhada e ainda pode se meter em encrenca à estas altas horas da noite antes de chegar lá.”

“Ótimo!”ri. “Trato feito. Agradeço muito a gentileza.”

Quando cheguei na frente do meu portão, desci do carro e fui agradecer a minha escolta. Depois de uma conversa breve, dei-lhes adeus e entrei em casa sob o olhar surpreso do guarda: devia se perguntar de onde vinha à esta hora da madrugada escoltada por aquele caminhão de combatentes … Imagine! Combatentes! Todo mundo morria de medo destes militares chadianos com suas reações imprevisíveis e violentas e eu parecia me dar muito bem com eles!

5 comentários

    1. Histórias tenho muitas mesmo pois amei o Chade apesar de todas as suas dificuldades e vivi profundamente as experiências vividas neste posto com os meus amigos/ anjos da guarda chadianos. Porisso as recordações são tão preciosas.

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