Um dia, em nossa casa de Teresópolis, lá no meio do mato.veio a noticia de que havia visita para o chá. Naquele dia, especialmente, o tédio me assolava a alma dos dezessete anos. A casa era distante do centro, onde os amigos se encontravam para atividades diversas, sanduíches, banana splits, Coca Colas e namoros. E eu lá, no meio do mato, a uma hora do paraíso juvenil. As montanhas, já as havia decorado, assim como as árvores, plantas, camaleões e cães vadios. Tédio. Dezessete anos, sem carteira de motorista, nem um pai que transgredisse a legalidade para me emprestar o Fusca 68, cor grená.
Veio então a notícia da visita .
Clarice Lispector. Clarice Lispector ia tomar chá em minha casa e fiquei curioso. Pouco sabia dela, mas conhecia a sua fama de escritora ilustre. E, para minha surpresa, em nossa casa cheia de livros, não me recordo de ter encontrado nenhuma obra dela. Décadas se passariam até eu compreender essa circunstância e a outra, a de Clarice ter ido ao meio do mato tomar chá.
Acredito que eram ciúmes, para dar a uma inveja contida nomenclatura mais generosa. Minha mãe, cronista de fama precoce no seu Recife natal, era contemporânea de Clarice, que também ali morara até seus quatorze anos. Posteriormente, mantiveram o conhecimento, senão amizade, por conta de Tania, sua irmã, ou não sei o que mais. Mas as alusões eram esparsas, embora eventualmente tivessem algum contato, desprovido, porém, de qualquer reverência por parte de minha mãe, provavelmente pelo conhecimento de infância.
Ouvi, durante a vida, incontáveis elogios e exaltações de minha mãe aos intelectuais de sua época e aos clássicos, escritores, poetas, literatos de todas as línguas e tempos. Por Clarice, reserva. Ciúmes ou recatada inveja, a verdade seja dita.
O fato é que eu, entediado e curioso, aprumei-me para o chá. Clarice chegou, com a irmã Tania, se não me engano, e uma prima da nossa família, também amiga dos tempos do Recife comum,.
Ah, pudesse eu volver a los 17 e ter mais olhos para ver e ouvidos para ouvir..
Sentada na varanda, com um lenço na cabeça a disfarçar as queimaduras que sofrera por um acidente doméstico, ali estava ela. Uma mulher comum, tomando chá, com bolo ou biscoitos, observada por um rapazola pretensioso. Pouco falou. E quando o fez, se não me falha a antena da percepção da época, parecia amargurada, infeliz. Posteriormente, ainda naquele dia, soube do acidente que lhe marcara a beleza e a expressão de esfinge e, provavelmente, a alma.
E assim foi. Anotei nos meus cadernos internos que vira ou conhecera Clarice por uma tarde. Interessei-me tardiamente e de forma rarefeita por sua obra, talvez pela influência do desprezo olímpico de minha mãe por aquele ícone. Na realidade, interessei-me pelo lado B de Clarice, a cronista feminina do “Correio da Manhã”, dando dicas de beleza ao público de sua coluna, patrocinada por uma fábrica de cosméticos, Helen Palmer. Sim, Clarice foi Helen Palmer, e foi Teresa Quadros, em outra publicação, respondendo a cartas de leitoras.
Que mistério tem Clarice?
Como disse João Grilo, não sei, só sei que foi assim.
Assim foi o dia em que minha mãe morreu e tive o encargo irrenunciável de providenciar o enterro e a aquisição do túmulo. Às 7h da manhã de um dia triste, dirigi-me ao Cemitério Israelita do Caju, no Rio de Janeiro para o doloroso encargo, tendo em vista a cerimônia que se daria em poucas horas. Resolvidas as questões de todas as naturezas, os serviços se iniciaram até o sepultamento.
Nào me lembro a quadra, nem o número do jazigo. Mas nunca esquecerei a vizinha da esquerda. Para a eternidade, malgrado os ciúmes, ou leves invejas, ou os estranhos caminhos da metafísica, para sempre repousarão, lado a lado, minha mãe e a sua vizinha da esquerda, Clarice Lispector.
Então, que mistério tem Clarice ?
Amei, Carlos!! Até fico mais empolgada com meus próprios escritos, no sentido de tentar aperfeiçoá-los, lendo essas suas estórias tão interessantes, tão cheias de vida ! Grande abraço, caro Amigo
Pena, Carlos, que o desencontro entre as duas tenha turvado sua eventual aproximação com Clarice, uma das grandes escritoras nacionais. De toda forma, você conheceu-a de perto e, segundo Jung, deve ter havido uma sincronicidade sua mãe e ela terem sido enterradas lado a lado – o que não se aproximaram em vida aconteceu depois dela.
Que lindeza, Carlinhos, a sua escrita, a sua memória ou pouca memória, os acasos da vida mesmo depois da morte. Beijo estalado
Que repousem as duas gloriosamente acompanhadas como relata sua tocante crônica
Querido Carlos, adorei a história, se os ciúmes permanecem sua mãe não deve estar feliz com a vizinhança!!
Beleza de anotação. O registro sobre a visita de Clarice e sua estranha melancolia, narrado com a percepção de um adolescente observador, encantado com o mistério das coincidências.
Lindo relato. Os mistérios de Clarisse, quem desvenda? Assim como os das amizades perdidas…