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#reflexões
Uma feliz jornada desde que me diplomei médico, por Eder Quintão

Fiz internato no hospital em 1960. Portanto há 63 anos.

Em 1937 um tio se foi por infecção após septicemia devido a um pequeno furúnculo nasal. O uso de penicilina começou no Brasil três anos depois. Com ela sumiu a sífilis e teve início a liberdade sexual. Até então urologistas não operavam próstatas: tinham as atividades limitadas a massagear próstatas para expelir gonococos.   

Outro tio morreu de infarto em 1963 porque tinha colesterol elevado, e sem remédio. Vinte e quatro anos depois surgiu a primeira estatina, e outras daí para frente. Com as novas medicações neste século o colesterol ficou desmoralizado: perdeu a guerra.

Na infância de meus avós apendicite matava. Morria-se de gripe (a famosa espanhola), sem sonhar com vacina. E, apesar dela contra varíola, havia uma seção sempre lotada no Hospital Emilio Ribas em meu tempo de interno. Lá aprendi fazer traqueotomia para casos de difteria (crupe) que eram muitos, diários.

A enfermaria de ortopedia do hospital era cheia de “pulmões de aço”, para aqueles que só podiam respirar para o resto da vida dentro dos aparelhos devido a poliomielite: quando terminei o internato em 1962 todos os equipamentos estavam desativados por falta de casos devido a vacina.

Vi muitos com tétano infantil porque na zona rural passava-se estrume de cavalo no umbigo do recém-nascido!

Nenhum médico mais se preocupa em distinguir sarampo de rubéola, tão comuns ao tempo de meu internato. Faz décadas que não mais soube de febre tifoide.

Varíola, poliomielite, difteria, sarampo, rubéola, cachumba, febre tifoide e tétano (por aquela causa), sumiram. Médicos só sabem essas coisas lendo livros do passado.

São Caetano do Sul era uma cidade provedora de ótima prevenção em saúde: havia posto de hidratação infantil devido às centenas de gastroenterites diárias pela água contaminada; agora é ocorrência incomum em hospitais gerais.

Campos do Jordão surgiu para tratar tuberculose dos que não podiam ir à Suiça. Agora são curados ambulatorialmente com antibióticos. Mundo afora os sanatórios viraram apenas agradáveis hotéis de veraneio.

Passei alguns dias no Hospital de Hanseníase testemunhando deformações atrozes. Os pacientes eram tratados com óleo de chalmougra, superstição inútil sobre uma semente indiana. Antibióticos e outros fármacos curam-nos longe dos isolamentos hospitalares.

No meu internato tratava-se hipertensão com fármacos que não mais existem, nem me recordo se diminuíam a pressão arterial. Nos últimos anos, devidamente tratados com novos fármacos, ninguém deveria ser hipertenso. E quem tivesse infarto do miocárdio tinha duas opções: morte, ou sorte (de ter tido infarto pequeno). Agora, infartados tratados em tempo em geral se salvam.

À época aprendi fazer diálise peritoneal para insuficiência renal. Há anos os transplantes renais aumentaram incrivelmente as sobrevidas.  

Um colega no meu tempo de estudante de medicina morreu de um linfoma que com quimioterapia não mata mais. Depois desta e dos transplantes é raro que leucemias matem.

A suprema glória de meus colegas internos era fazer cirurgia por úlcera duodenal, muitas por semana. Novos fármacos e antibióticos extinguiram Helicobacter pylori e aposentaram o bisturi para esse uso.

Vesículas biliares com cálculos são removidas com dois furinhos no abdome e alta hospitalar em seguida sem precisar cortar o abdome.  

Para se descobrir tumor cerebral fazia-se arteriografias injetando-se contraste nas carótidas, sob anestesia. Com a invenção dos meios de olharem dentro de nossos corpos (tomografia e ressonâncias), tumores milimétricos não mais se escondem e muitos tumores cerebrais são operados por via endoscópica, isto é, sem abrir o crânio.

Com tubinhos finos e flexíveis olha-se dentro de nosso tubo digestivo, do esôfago ao fim, e diagnostica-se tudo que há lá dentro.

Ao término de meu internato criou-se no hospital a primeira unidade de terapia intensiva, agora seção obrigatória de qualquer hospital de pequeno porte.

Naquele internato nunca se falou em AIDS. Começou a matar 20 anos depois, mas num lampejo surgiram as drogas para tratá-la antes de me aposentar. Faz tempo que não mais soube de mortes por ela. O vírus chegou, e logo foi desmoralizado. Pasteur saltaria de felicidade do túmulo se tivesse tido oportunidade de testemunhar caso igual!

Alzheimer e demência senil esperem, logo vamos derrotá-los, e câncer de mama e de próstata não sobreviverão mais meio século.

Para confirmar gravidez injetava-se urina em franguinhos e via-se que a crista crescia rápido em vários dias. Agora, com um pouquinho de sangue em algumas horas todos os hormônios são medidos e mede-se muito mais.

As medicações usadas para tratar diabetes de adultos não mais existem. Criaram-se vários tipos de insulinas e sistemas eletrônicos para monitorar diabetes.

No meu internato, pacientes e médicos fumavam dentro das enfermarias, um dava cigarro ao outro!

Mal se instalou a Covid e a vacina derrotou-a.

Nascido em 1933 tive apendicite aos 17 anos de idade. Se tivesse nascido no século 19 teria morrido muito antes do século seguinte. Sim, claro, continuaremos a morrer, mas nosso país e o mundo estão cada vez mais cheios de “jovens” com mais de noventa anos e nos próximos cinquenta anos serão poucos os jovens trabalhadores para sustentar-nos. Então permitirão que nos aposentemos só após os noventa… Sorte minha, aposentado, e aos noventa, não ter nascido no século 21!

3 comentários

  1. Sapientíssimo Éder, seu texto deve constar nos anais da Medicina Paulista.
    Nele, descobri que você e a minha Goiânia são safra de 1933. Vocês dois estão no fastígio da vida. O Gilberto Mendonça Teles, poeta e ensaísta de Goiás, está na ativa aos 92 anos. Viva a Medicina! Sua crônica me remeteu imediatamente à música dos Titãs ( o pulso que ainda pulsa). Interessante que, há algumas semanas, estava lendo sobre a bouba, uma doença bacteriana realmente boba mas que matou e desfigurou muita gente exatamente na década de 30. Parabéns pelo texto e pelas reflexões, embora eu acredite que a máquina uma hora vai parar, seja com 100 ou 130: de susto, de bala ou vício. Mas se continuará noutras misteriosas formas, como já disse alguém em quem acredito : o Reino não é nesse mundo. Um forte abraço!

  2. Éder, muito obrigada! Quanta informação importante. Ao ler seu texto fiquei pensando como a nossa memória é curta, ou seletiva. quer seja por não ter vivido essas experiências, quer seja por falta de vontade de informação científica de peso como seu relato.
    A gente reclama por pura ignorância, agigantando um passado muito mais cruel do que queremos admitir. Viva a medicina, viva os médicos, sobretudo os que, como você, nos ensinam a olhar com otimismo o mundo que estamos vivendo. Obrigada

  3. Como é bom sabermos que progredimos com a Ciência mas, triste porque muitas vezes se descobre drogas por imprevistos decorrentes de feridos em guerra.
    eu mesma estou viva por conta dela – a penicelina!
    Por dificuldades pós parto, por um triz nao fiquei órfã de mãe ou talvez nem nascido.
    O ano é 1945.
    Conta a história que foi um upa encontrar a penicilina. O hospital era o
    Samaritano e o médico Dr. Lane que a conseguiu, nao saberia dizer como!
    obrigada

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