A história da letra de Wave é conhecida, mas não custa relembrar. Tom Jobim havia composto a música e pedira a Chico Buarque para fazer a letra. Ocorre que havia um prazo para entregar o trabalho: seria tema de uma novela. O prazo se esgotando e nada do Chico entregar a letra. Quando Tom faz uma última cobrança, Chico avisa que ainda não conseguira fazer a letra, mas já tinha o primeiro verso: “vou te contar”.
Dada a urgência da situação, Tom não esperou mais e completou:
Vou te contar
Os olhos já não podem ver
Coisas que só o coração pode entender
Fundamental é mesmo o amor
É impossível ser feliz sozinho
A integração entre letra e música é um fenômeno interessante. Por vezes parecem ser inseparáveis e existir desde sempre. Incertos motivos pessoais nos levam a fixar mais nas letras ou a incorporar a melodia com mais força. Mas, nas grandes canções – aquelas que se eternizam – letra e música estão ali juntas. Interpenetram-se e, como os bons livros, permitem sempre novas releituras ao longo da vida.
As canções, a rigor, têm dois campos construtivos bem distintos. A música vem da Água e do Ar: bons ventos criam uma linha melódica que navegará num “mar” rítmico mais ou menos agitado, protegida por “nave” harmônica compatível. Já a letra constrói-se com a visão da Terra e os humanos sentidos tomados pelo Fogo da alma. Os grandes compositores produzem a mágica: chegam ao porto com letra e música fundidas numa liga duríssima.
Muitas composições ilustram essa interpenetração mágica, entre letra e música. Chamemos Chico e Tom de novo à conversa:
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia
Vou voltar…
Sabiá, de 1968, ilustra uma das várias composições eternas da dupla, desculpando amplamente a mancada de Chico em Wave.
Permitam-me ainda um outro exemplo para ilustrar essa pequena crônica. Só a estrofe final de Incompatibilidade de Gênios de João Bosco e do grande Aldir Blanc:
Dotô (ai, dotô)
Se eu peço feijão ela deixa salgar (e ela deixa salgar)
Calor (ai, calor)
Mas veste casaco pra me atazanar (só pra atazanar)
E ontem
Sonhando comigo mandou eu jogar (mandou eu jogar)
No burro (foi, no burro)
E deu na cabeça a centena e o milharAi, quero me separar
Precisa dizer mais alguma coisa?
O resto é mar
É tudo que não sei contar…
carlos de castro, nome de poeta, musico e escrevente, junta tudo e cria uma msg deliciosa de ler, ouvir e divagar.
Para leigos em musica, mel para os ouvidos e por cima ainda explica porque.
Parabéns
Delicia de crônica, aliás, mais que crônica, aula de aprender que a música é ar e mar e letra é terra e fogo.
Quem sabia disso?!
Carmos, no dia que parte nossa estrela Rira Lee, um bálsamo para nos essa bela crônica.
Wave e Sabia são minhas músicas prediletas!
Obrigada 🫶🏼
Vou te contar, Carlos, eu nunca acreditei que esses 4 elementos (água, ar, terra e fogo) seriam os constituintes da natureza. Depois da sua crônica, essa teoria passou a ter sentido, inclusive, pra gerar um quinto elemento: a música.
Crônica agradabilíssima de ler com seu ritmo e sua fluidez. Adorei aprender que a música e ar e mar e a letra e terra e fogo. Para mim letra e música são uma união divina e quando isso acontece vai reto como uma flecha certeira tocar o nosso coração.