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Os sapatos sob medida de Leonardo Quindere


Era dia de entrega. Apesar da idade avançada, gostava de fazer pessoalmente. Gostava sobretudo de entregar sapatos para noivos.

O casal de hoje conhecia desde criança e, se não estava enganado, havia comparecido ao batizado de um deles. 

Ernest Shoeman era um homenzarrão, apesar da idade, uma presença marcante. O tempo tinha lhe curvado a coluna, as mãos endureceram com o ofício e para enxergar coisas miúdas, só com os óculos na ponta do nariz, que usava sempre. 

Aquela altura da vida, e tendo visto tantas idas e vindas, se sentia à vontade e obrigado a dar um conselho ou dois. 

Fazia dos seus sapatos metáfora, gostava de dizer aos noivos que se sentia honrado em participar desse passo tão importante e complementava dizendo que aqueles sapatos tão especiais deveriam circular o mundo. Dito isso pedia para que um dos empregados trouxesse os sapatos. E ali fazia a entrega formal. 

Hoje o encarregado era o Eustáquio. Lembrou do dia em que o havia selecionado entre vários jovens. Após checadas as habilidades manuais, ele costumava fazer uma pergunta.

Perguntava o que o jovem gostava de fazer, a maioria dizia que gostava de fazer sapatos, Eustáquio falou que gostava de ler e ao ver um sapato pensava nos caminhos que percorreria. Eustáquio enxergava além… contratou.

Ernest estava nesse ofício há gerações, a arte de fazer sapatos vinha desde antes do seu bisavô, talvez o primeiro shoeman, a partir dali criou-se uma dinastia de sapateiros. 

Os tempos modernos fizeram com que o negócio quase falisse, viu concorrentes fechando as portas e artesãos virando operários. A sua resposta à crise foi manter a qualidade e fazer dos clientes amigos. Assim vinha tocando o barco. 

Muitas vezes na varanda de casa gostava de lembrar do processo da confecção de um sapato sob medida. Fazia para não esquecer nenhum detalhe. 

Nesses cochilos,  criava um sapato mentalmente. Ia das medidas até a entrega, uma viagem por um mundo conhecido. Revia cada detalhe e com isso esquecia do mundo e dos problemas. Desses devaneios brotavam ideias, sobre calçados e caminhos.

4 comentários

  1. Reconheci o sr. Ernesto!
    nao só fazia a gente rodar o mundo com seus sapatos um tanto mais espaçosos para abrir
    a minha joanete… como, nos casamentos, a chatura de ficar em pé no altar, era aliviada pela
    ponta do sapato, arredondada para nao encravar as unhas.
    Muito lindo. O andar é caminho. Tem que ser percorrido com amor ao próximo, como costurava sr Ernesto e Eustáquio.

  2. Pena que não conheci o sr Ernesto, sensível à importância que os sapatos têm na vida de todos, principalmente na de nós mulheres, eternas sofredoras dos saltos altos.

  3. Prezado, Leonardo. Seu texto é muito afetuoso, e também uma homenagem a todos os sapateiros. Essa é uma profissão que está caminhando para a extinção, assim como os alfaiates. São admiráveis esses profissionais meticulosos e abnegados em agradar aos seus fieis clientes ( ou fregueses). Parabéns!

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