Dona Yayá
Súbito, do luar um rastro luminoso no canto da sala. Ela resolve seguir esse brilho. Seus dedos ávidos tocam na fechadura dourada. A porta não abre. Há chave, mas ela não sabe onde se encontra. Procura em gavetas, porta-joias, caixas. Pulseiras, anéis, panos, papéis amarelados, tudo fica espalhado no chão, e a chave, por pequena que fosse, seria encontrada, mas permanecia oculta. A lua não tem tempo para esperar pela busca, faz seu traçado no céu, curva-se no horizonte. E ela, reclusa em seu casarão, já não distingue o dia da noite. Está trancada e só.
Considerada louca, incapaz de gerir a própria vida. Órfã e sem parentes próximos, precisava de um tutor que monitorasse sua fortuna, foi a conclusão dos especialistas. Já não mais lidava com fotografias; e de seus risos nos saraus que promovia com artistas, ouviam-se apenas comentários. Do automóvel que dirigia, ecoa o som do espanto: “Uma mulher ao volante?!!!”. À perplexidade da vizinhança, apenas colocava a mão direita no queixo e seu olhar destemido lançava desdém aos preconceitos.
Nessa época, foi-lhe arranjado um noivo, rejeitou a ideia de casamento. Teria outro amor? Comentários não faltavam. Falava-se de seu afeto por certo rapaz moreno, que por sua vez gostava de pilotar aviões. O fato é que permaneceu solteira por opção. Véu e grinalda nunca usou, mas carregava o manto da loucura, que lhe fora imposto — nele se sentia? De sua condição de mulher livre algum vislumbre?
Era início do século XX, o mundo já conhecera a capacidade humana para o mal, a guerra destroçara o outro lado do oceano. Mas, num ponto isolado do mapa-múndi, uma mulher tecia entre quatro paredes seu drama pessoal, alheia ao que se passava ao seu redor — Dona Yayá, assim era conhecida. A vastidão do planeta se restringia aos ângulos dos vãos da casa. Junto à vidraça, procurava o pássaro que na primavera vinha cantar logo cedo. Fora de seu campo de visão, o sabiá nunca avistado; os galhos das árvores do jardim permaneciam solitários, como ela.
Com a herança deixada pelos pais, estariam disponíveis ante seu olhar campos floridos, repletos de aves e animais; no entanto, para ela, paisagem indisponível. Neve, flocos caindo, um pequeno chalé com uma montanha branca ao fundo e uma menina numa charrete, ainda estava guardado em sua escrivaninha o desenho que fez quando criança — cenário que a encantava, mas nunca conheceria. Permaneceu aprisionada até sua morte, em 1961.
Hoje o casarão em que viveu é sede do Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo. E as escavadoras da memória do Bixiga saem no Carnaval para contar a história de Sebastiana de Melo Freire — Dona Yayá : “Com tudo que fazia, que não era coisa pouca, com tanta hipocrisia, foi trancada como louca…”. Alegres, com o estandarte colorido do bloco, seguem pelas ruas do bairro até chegar à antiga moradia na rua Major Diogo, 353, e, em gesto simbólico, abrem suas portas e janelas:
— Yayá livre!
Prezada Lourdes, obrigado por me apresentar à dona Yayá, a paulistana de estirpe que se vestia com o manto da loucura. Que história! Na proxima ida a Sao Paulo quero visitar o velho casarão da rua Major Diogo, 353.
Que interessante.
As mulheres, sempre elas, promovendo a liberdade e a beleza na Terra dos homens bélicos. Ah, mas haverá punição…
Yayá livre!
Como as mulheres sofriam! Como sofrem! Que linda e tristíssima história, que se repetem.
Obrigada, Lourdes querida, por mais um depoimento que resgata a memória descuidada de São Paulo.