Mamãe estava sentada na poltrona da sala, as pernas cobertas pela manta azul, as meias até a canela prendendo a calça do pijama.
– Hoje, vamos para Buenos Aires, falei. E depois, à Terra do Fogo.
Mamãe sorriu.
– Pelo mar, completei.
– Você sabe que eu me sinto mal, ela reclamou.
– Te dou um remedinho, e estiquei a mão sobre o aparador para pegar a vitamina D.
Mamãe já não vive sem isso.
– Convidei Laura e Tatá, avisei.
Mamãe ainda balançava a cabeça quando a campainha tocou.
– Está aberta. Entra.
Eu não podia largar mamãe sozinha subindo a escada do barco para ir abrir a porta.
– Subam, meninas. Hoje vamos navegar em águas geladas.
Mamãe nunca tinha visto pinguins de verdade. Ou não se lembrava. Depois que perdeu a visão, fomos às cataratas do Iguaçu e aos campos de flores do Canadá, mas pinguim ia ser a primeira vez.
Minha sobrinha Laura e sua filha Tatá, de três anos, também gostavam de viajar.
Tatá subiu tombando para os lados.
– Cuidado pra não machucar a bisa, adverti. Senta logo. Para o barco partir, precisa estar todo mundo sentado. A gente pode cair.
Tatá se acomodou na poltrona ao lado de mamãe e puxou um pedaço da coberta. Fazia muito frio e a água gelada estava espirrando em nós.
Laura queria saber a que horas íamos chegar.
– Vamos descer em Buenos Aires?, perguntou várias vezes.
Ela ainda sonhava em reencontrar o ex-namorado, pai de Tatá. Podia ter ido para qualquer lugar do mundo desde que partiu sem dar explicações. Talvez por isso Laura adorasse viajar comigo e com mamãe. Íamos sempre para longe.
– Que graça tem viajar até Santos ou Rio de Janeiro?, mamãe perguntava. E completava: – Se quiserem descer em Buenos Aires, eu não me importo. Sou capaz até de arriscar um tango.
Dizia isso enquanto firmava as pernas no chão e balançava o tronco ao som do acordeão.
– Mamãe, vamos dançar só mais um pouco, avisei. Precisamos voltar para o barco e seguir para o sul para ver os pinguins.
Laura logo esqueceu o que procurava e Tatá queria abraçar um filhotinho. Sabia muita coisa da vida dos pinguins e começou a contar os detalhes para mamãe:
– Eles andam com os pés para fora e sempre com roupa de festa. Vão de um lado para outro o tempo todo juntos, procurando o frio.
Até que Tatá se lembrou do que mais gostava na casa da bisa:
– Tem coca-cola?
– Claro que tem, querida. Vou ter que descer do barco um pouquinho. Espera, falei.
Corri até a cozinha e trouxe o refrigerante num copo descartável.
– No barco só pode copo de plástico, expliquei.
Logo vimos alguns pinguins que brincavam próximo da praia. Tatá pediu para o barco chegar mais perto, mas não era possível.
– Não dá, podemos encalhar, avisei.
Mamãe não se lamentou. Ria, olhando para a direita, escutando os gritos das aves. Comentou que eram muitos e pareciam vestidos para um casamento. Ela balançava a cabeça como quem tinha acertado na escolha do passeio. Tudo tinha valido a pena. Que bom ter guardado o barco. Que bom que estava sempre em ordem para quando quisesse sair. Que bom passear, sentir o cheiro da maresia, as gotas salgadas espirrando no rosto e aquelas aves tão simpáticas fazendo suas correrias.
Mamãe estava corada e mexia a cabeça em sinal de aprovação, quando Tatá se levantou. A menina queria se aproximar da amurada do barco, mas se desequilibrou e o copo de coca-cola tombou no tapete. Mamãe ficou paralisada. Tatá, com o rosto vermelho de vergonha. Laura ficou brava com a filha. Quis ir embora.
– Vamos, acabou a viagem. Vou limpar essa sujeira e vamos embora.
Pedi para Laura esperar. Precisávamos atracar e encaixar as escadas para que elas pudessem descer.
Mamãe permanecia muda. Parou de sorrir e apertava o maxilar com os olhos na mancha escura de refrigerante.
– Vou limpar, mamãe, não se preocupe, avisei. Mas ela não respondia.
Acabamos assim nossa última viagem. Depois desse dia, mamãe às vezes até entrava no barco, mas reclamava de enjoo e não se interessava pela paisagem. Passava as tardes sentada na poltrona, os olhos parados no tapete, na direção do ponto onde tinha caído coca-cola. Nunca mais quis ir para longe.
Esse conto de Sandra Silvério foi lido no sarau do Clube dos Escritores 50+, realizado em dezembro, na Livraria Mandarina, em São Paulo
Nem sei se lembro ou se criei uma memória, tem um hora que a fantasia se mistura com a realidade! Viva a imaginação! Embarquei nessa viagem! Lindo texto
Que delicado e belo texto! Adorei o apertava o maxilar com os olhos na mancha escura. Parabéns!
Lidia
Adorei a delicada mistura de realidade e devaneio nas pessoas presentes no barco. A vida para mim se define assim, neste delicado equilíbrio. Gostei muito.