Acabara de me aposentar das Nações Unidas em 2005 e tinha voltado para São Paulo, a minha cidade natal. Até agora, eu percorrera o planeta e atuara em alguns dos países mais perigosos do mundo sempre tentando servir e ultrapassar os meus limites. Se eu tinha a certeza de que todas as experiências que vivenciara me levariam à uma nova vida, eu estava no momento doente e sem rumo. É na hora mais escura da noite que nasce a alvorada me repetia para enganar a minha angústia …
Enquanto pensava, olhava fascinada a lua cheia que via da minha cama. Estava linda, azulada, enorme e eu via claramente dentro dela a imagem de São Jorge matando o dragão. Algumas pessoas também viam nela uma velha carregando um feixe de lenha nas costas. E ainda havia outras, como sempre, que não viam coisa alguma …
De repente, senti que entrava num daqueles estados onde as fronteiras entre o sonho e a realidade se desfazem… A lua se movia lentamente. Daqui a pouco daria a volta por cima do prédio vizinho e desapareceria do meu campo de visão.
Ouvi um barulho e uma águia dourada apareceu no teto do meu quarto. Ela me olhava atentamente, crocitava nervosa, batendo as asas como que solicitando a minha atenção.
Sorri com as ótimas lembranças que me vieram à cabeça ao vê-la: quando trabalhara no Cazaquistão por alguns meses, eu tinha conhecido a xamã Gulnora ( Flor de luz, em cazaque) que viera me fazer massagens quando tivera minhas costumeiras crises de dor na coluna. Tínhamos ficado as duas muito amigas. Gulnora era uma xamã cujo animal de poder era precisamente a águia. Muitas vezes, tínhamos ido passear nos fins de semana na estepe na periferia de Alma – Ati, a capital do país. Ali, ela me mostrara a beleza deste bioma e reproduzira perfeitamente todos os sons da fauna local, usando apenas sua garganta e sua boca.
Progressivamente, a imagem da águia se turvou dando lugar à outra, que parecia ser a parte superior do corpo de um ser humano. Este estava inclinado para frente, apoiando o rosto nos joelhos dobrados. Vi as costas, a nuca, os cabelos desta forma que foi ficando mais nítida. Imediatamente reconheci o coque negro e a roupa humilde de Gulnora. E de repente, ela se aprumou e vi o rosto da mulher -águia, ainda mais belo, mais jovem do que lembrava, inteiramente banhado de luz. E a voz de Gulnora se fez ouvir na minha cabeça: vim dizer a você que voltei para minha casa e que dentro em breve irei fincar a minha yurte (tenda circular de populações nômades centro-asiáticas) em outra vida. Gostei muito de conhecê-la.
Gulnora! Fico tão feliz que tenha vindo me visitar. Estou passando por um momento complicado do ponto de vista saúde e me sentindo perdida pois tenho uma total mudança de vida a gerenciar. Em suma, minha amiga, preciso me curar e encontrar uma nova missão.
Não se preocupe, respondeu ela. Está fazendo tudo certo. Chegou a hora de você voltar para casa e você voltou. Voltou para onde estão suas raízes. Você terá uma nova vida com muitas vitórias mas para isso acontecer, você precisava sair das Nações Unidas. Você está gravemente doente, isso é um fato, mas vai se curar. Agora para encontrar sua nova missão, escreva… seja uma contadora de suas próprias histórias e o resto seguirá. Vim aqui também lhe dar um presente.
Ela abriu a mão e vi nela uma tulipa vermelha da estepe.
Para mim? Que linda! Vou cuidar dela com todo carinho.
Gulnora se inclinou levemente na minha direção: não …não a pegue com a mão … é muito delicada …vai machucá-la. Vou colocá-la no seu coração para que fique linda e florida pelo resto de sua vida. Ela também a lembrará sempre de mim e do Cazaquistão. Pronto! Agora é só cuidar bem dela. Ela sorriu. Tenho de ir. Estou feliz pois tomou a decisão certa mas precisa contar suas histórias. E desapareceu.
Algum tempo depois, recebi um telefonema de Karl Heinz, um consultor alemão que trabalhara comigo por alguns meses no PNUD ( Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em Moscou . Ele acabava de voltar do PNUD Cazaquistão e queria me dar notícias dos meus amigos cazaques. Quando estávamos para desligar, ele acrescentou: Ah! Estava esquecendo de lhe dar notícias da sua amiga, a mulher – águia. Pouco depois de sua partida, ela voltou para sua terra, lá nos lados do lago Markakol no Cazaquistão oriental e seu filho me falou que ela faleceu. Pensei que você gostaria de saber.
Ah, Blanche, amaria viajar c vc, que história!!
“De repente, senti que entrava num daqueles estados onde as fronteiras entre o sonho e a realidade se desfazem“, espetacular!
Beijo grande!
Querida Lilian, desculpe pelo atraso na resposta mas sou uma negação com digitação e computadores. Que bom que gostou da historia. Este realmente foi – e ainda e – o ponto alto desta história para mim. Um abraco
Lindo, comovente mesmo. Saído direto do coração.
Caríssimo Carlos. Desculpe o atraso na na minha resposta. Realmente sou meio analfabeta com computadores. Você acertou em cheio. Conto todas as minhas histórias com o coração. Lembra daquela frase de St Exupery no Pequeno Príncipe? Rezava que só se ve bem com o coração. O essencial e invisível aos olhos. Um abraço.
Quão emocionante. Muitas vezes, mais importante é como se fala, não o que se fala. Como você escreveu mostra a imensa carga de afeto em você. Já vi São Jorge, já vi a Madona mas nunca vi uma velha e seu feixe de lenha.