Urdidura do destino. E nela, o cansaço pela busca de moradia. Quando dobraram a esquina, o alívio. A menina foi a primeira a avistar a placa na casa: aluga-se. Paredes descascadas, vidros quebrados, algumas manchas de mofo, ficava junto a um córrego. Dava para ver, ao fundo, o pomar abandonado e a bananeira com cachos maduros.
— Olha, vó, tem banana! Vó, é aqui!
Depois de caminhar quase o dia todo, com as pernas doendo e os pés inchados, a avó ajeitou os óculos:
— Ah, dá para si morá, sim — vamo!
Não tardou para as notícias chegarem. A casa estava há anos para ser alugada, ninguém queria morar nela — mal-assombrada. Numa noite de lua cheia, o sapateiro chegou a ouvir cantoria lá dentro, e era só escuridão. Uma mulher com vestido vermelho dançava em cima do telhado, viu a dona do armazém. Por lá, muitas mortes, de tifo, diarreia e até tiros, disseram outros.
A avó contou as economias, junto delas restavam uma correntinha e a aliança de ouro, foi negociar com o proprietário. Conseguiu redução no valor do aluguel depois de expor a situação em que se encontrava: sozinha para cuidar de seus netos pequenos. Deles não se conhecia a paternidade. A mãe, sua filha, havia ido embora, não sabia para onde, com um motorista de caminhão.
Vizinhos ajudaram na mudança e na limpeza. Pó, muito lixo, teia de aranha. E ainda o vazamento de um cano. Só no início da noite conseguiram se instalar. Os barulhos começaram logo depois da sopa. A porta da cozinha bateu com força. Ao tremor da estante, uma xícara caiu no chão. Do banheiro ouvia-se a descarga, sem ninguém dentro. Correntes rangiam. Estavam exaustos, adormeceram logo. Na segunda noite, os netos pularam na cama da avó e se grudaram ao corpo dela, a menina de um lado, o menino de outro. Como os barulhos persistiam, a avó tomou uma decisão: os três na cozinha, e ela acendeu uma vela no centro da mesa.
— Tô chamando! Chamando ocês tudo. Num temo pra onde ir. Vamo vivê junto, tudo em paz, sem assombrá. Tamo combinado?
Esperou um tempo, nenhum ruído. Considerou o silêncio como pacto aceito; com um galho de arruda saiu benzendo os cantos e todas as coisas da casa.
Depois de alguns dias, a menina vê quando ele chega. Antes de entrar, tira o chapéu e raspa os sapatos no capacho. A bengala é deixada junto à porta, ele manca da perna direita. Magro, de estatura mediana, com paletó xadrez surrado e calças claras. Na sacola traz meia dúzia de pães, fatias de mortadela e um litro de leite, deixa tudo na mesa. Em seguida, no formato de nuvem branca, some pelo estreito vão entre a parede e o armário, torna-se invisível.
— Ah, então é assim?!!!
Surpresa, mas sem nenhum sinal de medo, ela continua a descascar batatas.
Mesmo em dias chuvosos, ele aparecia no mesmo horário, quando o sino da igreja tocava no final da tarde, sempre com a sacola de pães. Acostumada com sua presença, passou a chamá-lo de Dr. Manezinho.
Numa tarde — o sino já havia tocado —, ela desenha numa folha em branco um pinheiro com bolas coloridas; embaixo dele, uma manjedoura e algumas figuras. Enquanto traça os contornos do Menino Jesus, Dr. Manezinho desponta na entrada mais carregado que de costume. Traz na sacola roscas de frutas secas, cobertas com açúcar cristal, e uma garrafa de tubaína.
Era Natal.
O importante foi o acordo. Entre os céus e a terra tudo se acertou! Sensacional!
Conto muito bom e envolvente
Que lindo, “ ocê” escreve tão deliciosamente…
Lindo!!! A simplicidade com o respeito, amor e com vida em todos os sentidos!
Lourdes,como sempre a leveza e a poesia dão colorido as palavras.
Sempre delicioso !
Lourdes, uma beleza de conto. Linguagem simples e significativa para seus temas sempre muito complexos. Quem me dera pudéssemos fazer esses acordos entre nós, os vivos. Grato pelo presente de Natal.