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A FACADA DESFERIDA DO FUTURO,
por Blanche de Bonneval

Estava morando em Paris e me encontrava tão esgotada com a preparação da minha tese de doutorado que o meu médico me sugerira tirar férias. Resolvera assim fazer uma pausa e ir conhecer o conjunto de fortalezas medievais construídas no sudoeste da França onde o catarismo – um movimento religioso cristão dissidente da Igreja romana – se tinha desenvolvido no século XII.  

Viajava como era do meu costume, sozinha e a pé com minha mochila nas costas. E me propunha descobrir nesses próximos dias, as belezas da fortaleza de Peyrepertuse (Pedra Furada, em occitano), a maior e a mais espetacular da região.

Andava naquela paisagem rural maravilhosa do sudoeste francês, empolgadíssima em conhecer estes imponentes castelos que tinham tanta densidade histórica. Dos dois lados da estrada havia vinhedos a perder de vista. Caminhava neste começo de tarde já cansada pelo forte calor de julho. De repente, comecei a suar em bicas e a sentir um medo que nada explicava e que parecia piorar a cada passo. Olhei a minha volta e não, nada havia de ameaçador, apenas fileiras bem-organizadas de videiras, algumas árvores frutíferas e uma atmosfera pacífica.

Parei e tive a impressão de já ter estado ali. Estava certa de que um pouco mais à frente, ia aparecer um morro à minha direita, onde estaria encarapitada uma casa com janelas azuis e paredes amarelas. Também encontraria mais longe um lago de criação de trutas com muitas taboas. E, por último, toparia com um painel branco, sinalizando a direção para chegar no castelo de Peyrepertuse. O único detalhe era que nunca tinha vindo por estas bandas…

Continuei a andar e constatei que a casa com janelas azuis e paredes amarelas, o lago de trutas e o painel indicativo estavam bem presentes nos lugares que recordava.  

Foi aí que lembrei onde vira esta paisagem. Ela me aparecera num sonho que tivera quando eu tinha doze anos (eu agora tinha vinte e seis). E esta recordação parecia aumentar ainda mais o meu medo. Sentia-me desorientada, sem entender as causas do meu pavor ou saber o que fazer para me acalmar. Pensei que se tentasse lembrar o resto do sonho ficaria mais tranquila. E assim consegui fazer esta volta ao passado e vivenciar de novo os acontecimentos daquele momento.

Me vi então numa tarde de verão, neste mesmo lugar onde estava agora. Ouvi atrás de mim o barulho de um carro que se aproximava. Virei-me para ver um Citroën preto, velhinho, com dois indivíduos. Os homens estacionaram o carro e vieram ter comigo. O primeiro me imobilizou, enquanto o segundo puxou da cintura uma faca com uma face serrada e me degolou. Testemunhei assim, impotente, o meu assassinato: senti o contato frio e cortante do metal e o cheiro enjoativo do sangue que jorrava das minhas carótidas. Largaram-me no acostamento e, com a maior tranquilidade, embarcaram no carro e foram embora.

Após ter visualizado este desenlace sangrento, encontrava muita dificuldade para me controlar. Mas sabia que, se queria ficar viva, precisava me acalmar. E achar logo um esconderijo, caso eu realmente viesse a encontrar aquele veículo do sonho com seus sinistros passageiros. Notei de cada lado da estrada, valetas muito fundas cobertas por densa vegetação espinhosa. Sempre podia me abrigar nelas…Tentei me convencer de que eu estava sendo ridícula. Afinal, eu podia simplesmente ter tido um pesadelo e nada mais do que isso. Mas o medo não amainava. E de repente, ouvi um carro que se aproximava: virei-me para ver detrás de uma curva aparecer a parte dianteira de um Citroën preto. Sem pensar mais um minuto, atirei-me na valeta mais próxima e caí lá dentro a mais de um metro e meio de profundidade, arranhando-me inteira no processo.

O veículo diminuiu a velocidade e parou um pouco adiante da valeta onde me encontrava. Ouvi portas baterem e vozes de homem conversando. Pareciam estar procurando alguém ou alguma coisa na estrada. Andavam de um lado para o outro, passando repetidas vezes na frente do meu esconderijo. Como nada acharam ali do seu interesse, voltaram para seu carro e se afastaram. Consultei o meu mapa: a próxima aldeia, Duilhac-sous-Peyrepertuse, ficava a cerca de duas horas de caminhada de onde estava e fui até lá. Os homens estavam invisíveis e resolvi pernoitar no hotel do lugarejo.  

Cedinho, desci para o café da manhã. O jornal do dia estava jogado na mesa e na primeira página estava escrito em letras garrafais a seguinte frase: JOVEM MORRE DEGOLADA NA SAÍDA DA NOSSA CIDADE! Fui ler o artigo: a polícia identificara a moça como Laury Dubousquet, uma parisiense que viajava a pé como eu pela região. Ela fora atacada no dia anterior à tarde na saída de Duilhac, numa encruzilhada perto da estradinha que levava à fortaleza de Peyrepertuse. E havia sido morta daquela maneira horrível: degolada por uma faca com uma face serrada. Fiz as contas: Laury devia ter sido assassinada pouco tempo depois do meu encontro com o Citroën preto.  

Perguntei-me se era seguro manter o meu passeio com assassinos à solta. E me veio na cabeça uma explicação confusa, com muitas vozes falando e se sobrepondo uma à outra. Não entendi grande coisa. Mas o que estava claro nessas mensagens era que agora que este crime fora perpetrado, eu não precisava mais me preocupar com questões de segurança: estava tudo bem. Segundo as vozes, essa região ao redor de Duilhac era lugar de má energia: tinha acontecido ali, através da história, muito coisa ruim. Falavam de bruxas, de fadas, de vinganças, de gente queimada viva na estaca… Mais tranquila, fui então fazer o meu programa do dia. Quando cheguei naquela fatídica encruzilhada na saída da cidade, comecei a subir com tranquilidade o caminho íngreme e cheio de pedras que me levaria à citadela. E só foi depois de cerca de uma hora e meia de escalada estafante que cheguei às ruínas da fortaleza. Estas se erguiam, majestosas, no cume de uma crista calcária a 800 metros de altitude no alto de um morro e estavam imersas no mais completo silêncio.     

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